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Clássico do Dia: 'Corrida Contra o Destino' retrata a radical contestação do poderio norte-americano

Todo dia um filme será destacado pelo crítico do 'Estado'; este dirigido por Richard C. Sarafian trazia uma tendência que sempre teve guarida no cinema de Hollywood, as perseguições de carros

22 jun 2020 - 09h05
(atualizado em 28/10/2020 às 23h07)
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Em 1971, a Academia de Hollywood estava tão vidrada no policial neo-realista de William Friedkin, Operação França, que se esqueceu de premiar outros grandes filmes da competição. A Última Sessão de Cinema, de Peter Bogdanovich, ainda recebeu dois Oscars (contra cinco, do Friedkin), melhor ator e atriz coadjuvantes, Ben Johnson e Cloris Leachman. A Laranja Mecânica, de Stanley Kubrick, indicado para melhor filme e direção, não levou nada. Pior, a Academia de Hollywood não indicou, para nada, o maior filme daquele ano. Claro que haverá gente discordando. Poderão reclamar à vontade, mas o melhor filme de 1971 foi Vanishing Point, que no Brasil se chamou Corrida Contra o Destino.

Vanishing Point! Ponto de fuga. No começo dos anos 1970, o maior diretor em atividade no cinema norte-americano era um cineasta hoje esquecido, Richard C. Sarafian. Em dois anos sucessivos, 70/71, ele fez dois filmes extraordinários, Corrida Contra o Destino e Fúria Selvagem/Man in the Wilderness. O segundo era um western da era anterior aos pistoleiros. Antecipou de dez anos o Werner Herzog de Fitzcarraldo. Richard Harris era o guia abandonado para morrer depois que o grupo de caçadores é atacado por um urso que o deixa gravemente ferido, mas ele sobrevive para se vingar. Até aqui a sinopse se assemelha muito à de O Regresso, que valeu a Alejandro González-Iñárritu seu segundo Oscar de direção, em 2015. Mas no Sarafian tem mais - Harris, cujo personagem se chama Zachary Bass, persegue John Huston, como o capitão que carrega seu navio pelo seco, exatamente como Klaus Kinski faria depois no Herzog. O cinéfilo sabe que o autor alemão construiu toda uma estética para colocar na tela o fardo dos sonhos que pesa sobre seus personagens obsessivos. Sarafian não era menos atraído por seres no limite.

Talvez sua história tivesse sido outra se, para começar, houvesse aceitado o convite para dirigir Amantes do Perigo, com Robert Redford, em 1969. Michael Ritchie substituiu-o e voltou a trabalhar com Redford em O Candidato. Mas Sarafian já estava fisgado pelo roteiro de Guillermo Cain - Guillermo quem? Sob esse pseudônimo escondia-se o escritor e ex-crítico cubano Guillermo Cabrera Infante, que se baseou em diferentes histórias reais para compor a trama de Vanishing Point. A carreira destruída de um policial de San Diego e a perseguição a um motorista que morreu ao bater, em alta velocidade, com uma barreira policial foram os alicerces para a construção do protagonista, Kowalski. Ele se lança nessa estrada, fugindo ao passado, numa corrida sem volta. É guiado por Super Soul, o DJ negro e cego - inspirado no cantor de rock The Big Bopper - que lhe passa pelo rádio as instruções sobre como enfrentar a força policial, à medida que o avanço de Kowalski vira resistência coletiva, motivando a torcida e expressando o sentimento de negação do establishment próprio da geração da chamada contracultura.

Kowalski e Super Soul são duas figuras representativas de uma época, a geração pós-Woodstock. A busca por liberdade, o trinômio sexo, drogas e rock'n'roll haviam chegado a um beco sem saída, mas a insatisfação continuava. O roteiro de Guillermo Cain retomava esse espírito contestador e o misturava a uma tendência que sempre teve guarida no cinema de Hollywood, as perseguições de carros. Como sempre, uma série de coincidências ou acasos levou o filme a tomar seu formato definitivo. Sarafian queria fazê-lo com Gene Hackman, mas o diretor-executivo da empresa produtora e distribuidora Fox, Richard D. Zanuck, bancou para que o filme fosse interpretado por um jovem ator que nunca teve outro papel tão bom, Barry Newman. Para Super Soul, o próprio Sarafian insistiu e deu sua primeira oportunidade a um certo Cleavon Little, que faria o pistoleiro negro de Banzé no Oeste, de Mel Brooks, de 1974.

O filme começa com a barreira policial numa estrada da Califórnia. A formação é para tentar impedir que o carro de Kowalski passe. Aparece o letreiro - dois dias antes, sexta-feira, Denver, Colorado, 12h02. A partir daí a narrativa segue cronológica até o domingo, 10h04, na barreira do começo. O avanço no presente é entremeado por flashbacks que revelam quem é esse Kowalski e do que está fugindo. Ex-piloto de corrida, ele agora transporta carros entre o Colorado e a Califórnia. Faz uma entrega e pega outro carro, um Dodge Challenger, para levar de volta. Antes passa pelo seu fornecedor para pegar droga, mas ele informa que sua conta está muito alta. Cobra o que Kowalski diz que não poderá pagar. E daí para a frente não há retorno.

A ideia de usar o Dodge Challenger 1970, o carro do ano, também foi de Zanuck. Virou um daqueles carros míticos do cinema, e tudo porque Zanuck estava querendo agradar a Chrysler, que emprestava seus carros ao estúdio pelo preço simbólico de US$ 1 ao dia. Foram usados cinco carros idênticos e nenhum deles precisou de ajustes especiais, exceto os amortecedores instalados na unidade que realiza o espetacular salto sobre o riacho. Toda a decisiva participação de Cleavon Little foi filmada durante três dias - a estação de rádio foi montada em Goldfield, Nevada. As cenas do deserto e as estradas a perder de vista localizam-se em quatro estados - Califórnia, Colorado e Nevada, já citados, mais o Utah.

Para acentuar a sensação de velocidade, o diretor de fotografia John A. Alonzo reduziu a velocidade das câmeras Arriflex II, escolhidas por serem leves. No caso da disputa entre Kowalski e o motorista do Jaguar que o desafia na estrada, a redução foi pela metade. Corriam a 80 km/h e pareciam estar a 160 km. No caminho, Kowalski encontra um encantador de serpentes, interpretado por Dean Jagger, e o décor impressionante é o da região dos lagos do sal de Nevada. Uma cena que chegou a ser filmada e foi deletada envolvia a jovem Charlotte Rampling como a mulher com quem Kowalski passa a noite.

Como crítico, Cabrera Infante colaborou com revistas de La Habana e com o jornal Revolución. A seleção de suas críticas em Un Oficio del Siglo XX revela um observador acurado, ligado no cinema autoral e em temas e formas transgressoras. Tudo isso o levava a Corrida Contra o Destino. Ao longo dos anos 1960, uma série de filmes de moto e de estrada retomara a vertente de O Selvagem, de Laslo Benedek, com Marlon Brando, de 1953, culminando com o fenômeno Sem Destino/Easy Rider, de Dennis Hopper, que virou o emblema da contracultura. Vanishing Point foi o pós, a radical contestação do poderio norte-americano, e dessa vez com foco também no racismo, um problema tão endêmico da 'América' que 50 anos depois, segue na ordem do dia com o Caso George Floyd.

Com dois filmes tão grandes no currículo - Corrida Contra o Destino e Fúria Selvagem -, Sarafian poderia ter sido, quem sabe, o maior, mas algo se passou durante a filmagem de The Man Who Loved Cat Dancing. O western de 1973 passa-se no Oeste Selvagem por volta de 1880. Sarah Miles faz a personagem Cat Dancing. Entra no meio de um assalto a banco e é feita refém por Burt Reynolds. Fogem, e são perseguidos pelo marido dela, à frente de um bando de mercenários. O ódio de Cat por seu sequestrador vira amor. No Brasil, chamou-se, por sinal, Amor Feito de Ódio. Durante a filmagem em Nevada, o agente de Sarah foi encontrado morto no quarto dela, num motel no deserto. Montes de pílulas sinalizavam para um suicídio, mas um inquérito foi instaurado depois que a autópsia revelou que sofrera ferimentos na cabeça. Na confusão que se seguiu, Sarafian perdeu o controle do filme, e talvez de sua vida.

As trajetórias de Sarah e dele não foram mais as mesmas, mas de que maneira tudo isso repercutiu na obra do diretor é só motivo de conjecturas. O que não dá para diminuir é a força de Sarafian naquele biênio em que ele, por um breve período, pode ter sido o maior diretor do mundo - um dos maiores, com certeza. Richard C. Sarafian foi ator em diversos filmes. Morreu em 2011, aos 83 anos, deixando viúva a irmã de Robert Altman, Helen Joan. Entre outros filhos, o casal teve Deran (Sarafian), que virou cineasta, mas nunca teve a importância do pai.

Onde assistir:

  • À venda em DVD
Estadão
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