Clássico do Dia: Em 'Johnny Guitar', Nicholas Ray subverte o western
Todo dia um filme será destacado pelo crítico do 'Estado', como este em que a facilidade de manipulação de informação no mundo atual torna o clássico de Ray mais atual que nunca
François Truffaut gostava de dizer que Nicholas Ray, num certo sentido, era o Roberto Rossellini de Hollywood. No reino da mecanização, era o artista-artesão que usava a madeira sagrada do afeto para construir objetos raros. Truffaut falava em pequenos objetos - grandes filmes. Para toda a geração da nouvelle vague - Truffaut, Jean-Luc Godard & Cia. -, Ray foi sempre o farol. Godard considerava-o o Rimbaud do cinema norte-americano, e Ray viveu sua estação no inferno no começo dos anos 1960. Foi na fase das superproduções de Samuel Bronston, lutando para manter-se autoral. Grande Ray. Difícil é escolher entre seus melhores filmes, o maior. O que mais fale ao coração, ou aos sentidos? Juventude Transviada? Delírio de Loucura? Jornada Tétrica? Ou o filme de esquimós de Ray, Sangue sobre a Neve?
Johnny Guitar! Contam-se muitas lendas sobre a gênese desse filme - desse western - único. Todas chegam mais ou menos ao mesmo ponto - o produtor Herbert J. Yates encomendou a Ray um filme para fazer Joan Crawford feliz. Ray já foi devidamente apresentado, na eventualidade - remota - de que o cinéfilo já não o conhecesse. Joan foi uma das maiores estrelas de Hollywood - a décima de todos os tempos, segundo uma pesquisa do American Film Institute. Lucille La Soeur, seu nome verdadeiro, não era apenas uma poderosa persona nas telas. Fora delas, era motivo permanente de escândalo na indústria. Bissexual, teria tido uma extensa lista de amantes de ambos os sexos. Garota, com apenas 11 anos, teria sido amante do padrasto, mas nunca considerou que ele tivesse abusado dela. Dizia que o sexo havia sido consensual. Uma menina!
Pode ser que nada disso fosse verdade, mas esculpiu alguma coisa - uma imagem? - no inconsciente coletivo. Joan não era certamente parâmetro para as plateias conservadoras, mas se tornou uma preferida do público e dos críticos, com direito a Oscar e tudo. Recebeu o prêmio por Almas em Suplício/Mildred Pierce, de Michael Curtiz, de 1945. Herbert J. (de John) Yates era dono da Republic, um estúdio especializado em filmes B. A partir de meados dos anos 1940, e cansado de ser o primo pobre dos grandes estúdios, começou a contratar astros e diretores de prestígio. Johnny Guitar foi um desses casos. Com a estrela garantida, deu carta branca a Ray.
Em 1954, a pressão da imprensa surtia efeito e o macarthismo começava a declinar. O cinema contribuía com filmes como Matar ou Morrer/High Noon. O western de Fred Zinnemann recebeu quatro Oscars em 1953, incluindo o de melhor ator para Gary Cooper, por sua memorável interpretação como o xerife Will Kane. Somando a ameaça que o macarthismo representava para a liberdade - para o individualismo caro ao espírito norte-americano - à personalidade forte de Joan, Ray e o roteirista Philip Yordan basearam-se num livro obscuro de Roy Chanslor para tecer a história que, mais que qualquer outra, ilustra o que foram aqueles anos. E o fizeram por meio de um gênero quase sempre conservador como o western, subvertendo suas normas. No western clássico, o conflito via de regra soluciona-se por meio do duelo final entre os pistoleiros. Ray e Yordan subverteram a regra propondo um duelo de pistoleiras - de mulheres. Andrew Sarris chamava Johnny Guitar de western freudiano.
O gênero muitas vezes teve esse caráter assumidamente psicanalítico, com revólveres substituindo o falo nas disputas masculinas. É famosa a cena de Rio Vermelho, de Howard Hawks, de 1948, em que os 'rapazes', Montgomery Clift e John Ireland, ficam medindo suas pistolas. Aqui, o confronto é entre Vienna/Joan e Emma/Mercedes McCambridge. Vienna acolhe o antigo amante, Johnny Logan, no seu saloon. Ele agora se identifica como Johnny Guitar e é contratado para tocar guitarra e entreter os frequentadores no Arizona, após a Guerra Civil. Vienna é uma mulher durona, focada nos negócios. Espera que a chegada da estrada de ferro valorize suas terras. Um homem é morto num assalto a banco e sua irmã (Emma) invade o saloon com o xerife e um bando de capangas. Emma tenta convencer o grupo de que Vienna e o Kid (e seus asseclas) são responsáveis pelo assalto. O clima é de linchamento, e é dessa forma que Ray e Yordan colocam na tela o clima perverso de linchamento moral na 'América' sob o macarthismo.
Essa maneira cega como o grupo se submete é característica do que ocorria no país, mais exatamente no Congresso, quando a Comissão de Atividades Antiamericanas presidida pelo senador Joe McCarthy, pressionava por delações premiadas para expor os comunistas infiltrados em setores vitais da nação. Embora o quadro tenha mudado, o paralelo é flagrante. As fake news viraram a triste realidade do Brasil nos últimos anos. A facilidade de manipulação tornou o clássico de Ray mais atual que nunca. O conflito básico já foi desenhado na sinopse acima, mas importante é destacar o que Danny Peary assinala em seu Guide for the Film Fanatic - cada personagem representa uma facção na disputa ideológica.
O Kid é um pistoleiro canhoto. Empunha a pistola com a esquerda e, portanto, é comunista. Vienna, que se une a ele - progressista? simpatizante? -, desde o nome é uma estrangeira nessa comunidade, alguém de fora, que não professa seus ideais. Logo, é suspeita e o macarthismo proliferou no clima de paranoia da Guerra Fria. Emma, a voz da reação, é a bruxa que se veste de preto. (Só falta a vassoura para ter saído voando de outro clássico, O Mágico de Oz, de 1939.) Como grande fazendeira, dona de terras e de gado, Emma acusa Vienna de querer, aliando-se à estrada de ferro - o progresso? -, querer destruir o american way of life de toda aquela comunidade, e era a acusação que McCarthy e seus seguidores faziam. O antiamericanismo estava querendo destruir os gloriosos Estados Unidos da América.
Nesse jogo entre os personagens, a cor vira signo e Vienna, lá pelas tantas, veste uma blusa vermelho. Red, comunista! Pode parecer um detalhe, mas é significativo. Toda a construção dramática se faz num jogo de oposições e até de confronto entre os personagens - defensores da estrada de ferro e estancieiros, ladrões de bancos e linchadores, a mulher lilberada e a reprimida. Emma enumera os amantes de Vienna para tentar desqualificá-la e até o pistoleiro destro (Logan, interpretado por Sterling Hayden) opõe-se ao canhoto, o Kid. Logan tem uma frase reveladora. Diz - "Respeito muito as armas, e além do mais sou um estranho aqui." Exatamente 20 anos mais tarde, David M. Halpern deu esse título, I'm Here a Stranger Myself, a seu documentário sobre o cineasta.
Todas as antinomias se inscrevem no quadro de embates maiores, talvez estruturais - ordem vs desordem, civilização vs barbárie -, mas o ódio de Emma ainda é mais visceral. A mulher-macho deseja o Kid e, posto que ele está ligado a Vienna, ela prefere os dois pendurados na forca que nos braços um do outro. Vienna, na única vez em que usa vestido, e branco, está prestes a ser enforcada quando é salva por Logan/Guitar. Ele próprio torna-se inimigo - o Exércio de um homem só dos vermelhos - e tudo converge para o subversivo duelo final.
Como autor, Ray foi muito importante. Seu grande tema é a violência, que todo homem ou mulher carrega e ele coloca como dilema moral, do qual os personagens podem emergir como vencedorers ou derrotados, mas sempre lúcidos. E ele fazia filmes que também eram reflexões sobre sua ferramenta de trabalho, e por isso fascinava tanto os autores franceses vindos da crítica. Dizia que o cinema é a melodia do olhar. Sua definição tem atravessado as décadas, o tempo. O olhar, como janela da alma, reflete a interioridade humana, dos personagerns, mas em Ray ele pode também comandar o fluxo da montagem, como na elaborada abertura de 55 Dias em Pequim, de 1963. Se Truffaut comparava Ray a Rossellini, pode-se aqui, e com mais propriedade, ligá-lo a Serguei M. Eisenstein. Independentemente do que se pensa de Eisenstein e seu tema - a tomada do poder pelos trabalhadores na Rússia czarista - os filmes são grandes obras que fizeram avançar o cinema. O de Ray, 55 Dias, é polêmico porque propõe uma saída individual para o problema do colonialismo, mas o início é um primor de construção.
Uma série de gestos e olhares constroi uma ideia da China ocupada pelas potências estrangeiras, até o surgimento do soldado interpretado por Charlton Heston, cuja cabeça se ergue na tela depois que outra é decepada no cadafalso. No desfecho, o mesmo décor, agora despido de suntuosidade, mostra, numa tomada de cima, a imperatriz. Antecipando de mais de 20 anos Bernardo Bertolucci, Flora Robson veste roupas de camponesa. Restituída à condição de mortal, repete - "A dinastia está terminada, está terminada." A melodia do olhar. O cinema, segundo Ray. Vienna veste-se de branco, de vermelho, sempre em oposição ao preto da alma de Emma. Sequência antológica a mostra ao piano, tocando o tema romântico de Victor Young - quando canção, é cantada por Peggy Lee -, e a própria trilha vira personagem. Quando tudo parece perdido, Joan Crawford, a boca amarga, diz a frase ambígua - "Vienna's closed, Mr. Logan". O saloon ou seu coração?
Poucos filmes, e westerns mais ainda, recorrem tanto a símbolos visuais - revólveres, cofres, escadas - para elevar a tensão e também para revelar aquilo que as personagens tentam manter secereto. Sem que nada pareça ter ligação direta com sexo, esse é o tema que percorre - subterrâneo, explosivo - Johnny Guitar. Ray faria a seguir Run for Cover/Fora das Grades, outro western, mais tradicional, mas só porque os protagonistas são homens, e aí veio Juventude Transviada. Ray, Kazan (Vidas Amargas), Douglas Sirk (Tudo o Que o Céu Permite) e um pouco mais tarde, Maggie the Cat. Elizabeth Taylor naquela combinação, Richard Brooks (Gata em Teto de Zinco Quente, baseado em Tennessee Williams). A América hipócrita e puritana estava com seus dias contados.
A juventude como transgressão. Jim Stark, Judy e Plato, James Dean, Natalie Wood e Sal Mineo. A nova sagrada família, a cena cósmica do observatório das estrelas. E logo em seguida, mesmo que o filme não seja bom, Jane Russell, a cigana de Sangue Ardente/Hot Blood. Uma revolução estava em curso. Nascera do infame macarthismo, que confrontou a 'América' com o pior de si mesma. Num de seus filmes com mulheres absolutas - A Noiva Estava de Preto? A Sereia do Mississippi? -, Truffaut fala de cinema e algum personagem lembra Johnny Guitar. Diz que é mais que um filme com cavalos. Psicanalítico, freudiano, barroco. Ray retomou a bandeira de King Vidor - Vienna é a versão final da Pearl Chávez de Duelo ao Sol, de 1946, imortalizada por Jennifer Jones. Somente anos depois, com Sergio Leone, o western voltaria a ser assim flamboyant, mas nem as trilhas operísticas de Ennio Morricone e O Estranho sem Nome de Clint Eastwood constroem o barroco nas pradarias do Wild West como Johnny Guitar. Nunca se soube quão feliz Joan Crawford ficou com o filme, e o papel. O cinéfilo, sim.
Onde assistir:
- À venda em DVD