Clássico do Dia: 'Onde Começa o Inferno' ressalta a força que existe na união das pessoas
Todo dia um longa será destacado pelo crítico do 'Estadão', como este western, com título original de 'Rio Bravo', direção de Howard Hawks e elenco formado por John Wayne, Dean Martin, Ricky Nelson, Pedro González-González e Angie Dickinson
No livro com a entrevista que concedeu a Nöel Simsolo - Conversation avec Sergio Leone, Petite Bibliothèque des Cahiers du Cinéma -, o diretor das trilogias do Estranho sem Nome e C'Era Una Volta cita seus westerns favoritos. Rastros de Ódio, de John Ford, Winchester 73, de Anthony Mann, Minha Vontade É Lei/Warlock, de Edward Dmytryk, e o que ele considerava o melhor de todos, Onde Começa o Inferno/RioBravo, de Howard Hawks. Leone comenta o que muitas vezes o incomodava no gênero, em Hollywood. As mulheres entravam meio contrabandeadas nas histórias. Só John Ford, ele dizia, conseguia tornar lógica a sua presença nos filmes. Foi injusto com seu favorito, Hawks. É impossível pensar em Rio Bravo sem Feathers/Angie Dickinson.
Como diretor, Hawks iniciou-se nos filmes mudos, em 1926, com Road To Glory. Assinou seu último longa em 1970 - Rio Lobo. Foram 44 anos como realizador - como autor. Robin Wood, um estudioso da obra hawksiana, dividiu seus filmes em blocos temáticos - dignidade e responsabilidade, tentação da irresponsabilidade, grupo, relações masculinas, consciência instintiva, etc. Hawks alcançou a celebridade com um clássico de gângsteres, de 1932 - Scarface, Vergonha de Uma Nação. Depois disso incursionou por quase todos os gêneros - aventura, comédia, ficção-científica (produziu e realizou cenas de O Monstro do Ártico, de Christian Nyby, de 1950), guerrra, policial noir, westerns. Dirigiu John Wayne numa série memorável que começou com Rio Vermelho, de 1948. Mais de uma década depois, foi a vez de Rio Bravo. Seguiram-se variações - Eldorado, Rio Lobo.
Há um consenso da crítica de que Hawks fez Rio Bravo como reação a Matar ou Morrer/High Noon, de Fred Zinnemann, com roteiro de Carl Foreman. No western de 1952, o xerife Will Kane/Gary Cooper passa o filme pedindo ajuda para enfrentar os pistoleiros que chegarão no trem do meio-dia para matá-lo e, no final, não precisa. Hawks, com roteiro de Leigh Brackett e Jules Furthmann, propõe o inverso. O xerife John T. Chance/Wayne passa o filme recusando ajuda, mas a necessita e a cada crise precisa ainda mais. Robin Wood cita uma cena emblemática, em que um bêbado responde ao chamado de Kane e ele o rechaça. O bêbado diz algo como "Já fui bom", o que não basta para Kane, e Wood vê na cena a origem de Dude/Dean Martin em Rio Bravo. Vale lembrar - o filme é sobre xerife que prende assassino na cidade de Rio Bravo, no condado de Presídio. Ele teve esse auxiliar, Dude, que foi abandonado pela mulher e virou o bêbado da cidade. O preso é irmão do poderoso local, que, com certeza, quererá resgatá-lo, e Chance vai precisar de toda ajuda para conseguir mantê-lo atrás das grades. Isso significa reintegrar Dude e se associar ao velho manco (Stumpy/Walter Brennan), ao jovem e inexperiente Colorado/Ricky Nelson e ao ajudante mexicano Carlos/Pedro González-González. E ainda tem a Feathers, que, como toda mulher no cinema de Hawks, aumenta o perigo para os homens.
Todos esses personagens são arquetípicos do gênero, mas antes de prosseguir é importante destacar que, além do bêbado, o velho e o jovem também eram outros dois de quem Will Kane recusava o oferecimento de ajuda - justamente o tipo de trio a quem Chance agora recorre. O mais importante de todos é o amigo imperfeito do herói. Esse é, quase sempre, um personagem que, no western tradicional, existe como contraponto à infalibilidade do protagonista, mas não é assim que funciona com Hawks. Na verdade, a importância de Dude é tão grande para o relato que é possível perguntar-se, como já fizeram alguns críticos, se Chance não será o contraponto dele, e se o tema não será a transformação do personagem de Martin. O próprio Hawks dizia que o filme é de Dude, e não é exagerado pensar que estivesse se referindo à excelência do trabalho do ator. Dean Martin começara em dupla com Jerry Lewis nos anos 1940. Fizeram todos aqueles filmes juntos e viraram ídolos do público, mas, se a química funcionava na tela, os dois se detestavam nos bastidores, cada um se considerando responsável pelo êxito.
Separaram-se, e seguiram as carreiras solo que todos sabem. Jerry estrelou comédias ótimas de Frank Tashlin, tornou-se ator e diretor de verdadeiras obras-primas do humor. Ator e cantor, Martin participou da Rat Pack de Frank Sinatra e, no mesmo ano - 1959 -, entregou as maiores interpretações de sua carreira, em dois filmes que integram a lista dos Clássicos do Dia - Deus Sabe Quanto Amei/Some Came Running, de Vincente Minnelli, e Rio Bravo. Aliás, cabe informar que o western de Hawks só se chamou Onde Começa o Inferno porque outro western de Ford, Rio Grande, de 1950, havia sido lançado como Rio Bravo nos cinemas brasileiros. Por excepcional que seja Martin, o filme não é dele, nem de Wayne, pelo simples motivo de que é sobre o grupo. Chance está ali como uma matriz masculina, mas cada um dos personagens é importante no coletivo. Dude é exemplar nesse processo.
Ele desce ao fundo do poço quando pede, como cão sem dono, que Joe Burdett lhe pague uma bebida no saloon. O outro, para humilhá-lo, lança a moeda na escarradeira, para obrigar Dude a se degradar até o limite, para conseguir beber. Chance intervém, e Dude o agride. Ele fica desacordado e, nesse intervalo, Burdett mata um homem. Chance o prende, reintegra Dude com a estrela de xerife auxiliar - o início da recuperação - e começa a montagem do grupo. Cada um dos demais cumpre seu papel como figura representativa do gênero. O ajudante tagarela, aqui o velho. O inexperiente que canta, e Ricky Nelson, o Colorado, era um cantor que se iniciava no cinema. Hawks consegue fazer da inevitável cena em que ele canta não um interlúdio, mas um momento decisivo. É o momento em que Chance, um pouco à margem, aprova com o olhar o grupo heterogêneo que criou. Há controvérsia sobre o auxiliar mexicano, que proporciona o chamado alívio cômico, e por isso Hawks foi chamado de racista no tratamento do personagem, mas isso não é verdade. Basta prestar atenção na forma como González-González é filmado.
E tem a mulher. Como garota de saloon, Feathers tem a moral duvidosa, mas ela não se intimida com o juízo alheio e possui as características de determinação e independência próprias das mulheres hawksianas. Num episódio que termina em morte, por causa dela, Feathers tem seu momento de virada e transforma-se numa nova mulher. O filme é perfeito como western. Tem ação, humor, tiroteios, reflexão. Hawks trabalha sobre bases tradicionais - os códigos de gênero -, mas busca sempre o frescor, do estilo e da interpretação. Robin Wood diz que o filme é tão estilizado, reduzido sempre à essência, que passa a ser austero. (É o oposto da estilização operística de Sergio Leone, e talvez por isso ele gostasse tanto de Rio Bravo.) A estilização chega ao cenário da ação e, ao contrário de Rio Vermelho, que era sobre o transporte de uma boiada e, portanto, um filme de paisagem, esse se passa na cidade, e o espaço é quase sempre fechado. A cadeia, o saloon, a rua com suas fachadas, só. Esse cenário é funcional. Ao contrário de Ford, que adorava recriar o cotidiano das comunidades do Velho Oeste - a Tombstone de Paixão dos Fortes/My Darling Clementine, de 1946 -, Hawks não tinha a nostalgia do primitivo.
Ford refletia sobre quanto custa construir uma civilização, é o sentimento, senão exatamente o tema, que atravessa seu cinema. Hawks se interessa mais pelas pessoas, pelo grupo. Mas o grupo, segundo o diretor, é a soma de indivíduos, daí os temas que o atraíam - amizade, dignidade, responsabilidade. A primeira fala de Colorado ressalta a individualidade. Chance pede informação a outro sobre ele. O moleque insolente retruca - "Por que não me pergunta, xerife?" Daí também, por conta da diversidade, os desvios - a tentação da irresponsabilidade que percorre Scarface, e define o gângster de Paul Muni. Houve um tempo, pré-Cahiers du Cinéma, pré-André Bazin, em que o western era considerado um gênero menor e, por isso, um filme com um tema 'sério', como Matar ou Morrer, ficou célebre. Zinnemann e Foreman estariam abordando a responsabilidade e, nas entrelinhas, atacando o macarthismo. Mas Zinnemann, apesar dos Oscars, era acadêmico, mais que clássico.
Esse equívoco era frequente - William A. Wellman também foi incensado por Consciências Mortas/The Ox-Bow Incident, de 1944, sobre linchamento. Douglas Brode, em The Films of the Fifities, ratifica essa visão distorcida. Diz que Hawks e Wayne, no fim da década, se insurgiram contra o que ele chamava de westerns adultos, maduros, que forçavam as plateias a encarar "nossas" (referia-se aos norte-americanos) fraquezas. O cinema de Hawks faz o elogio do profissionalismo que se mede pela responsabilidade dos indivíduos, sejam homens ou mulheres, e determina sua ação como grupo. Num texto que ficou célebre - Le Génie de Howard Hawks, Cahiers du Cinéma de 1953 -, Jacques Rivette escreve que a medida dos filmes do autor é a inteligência, mas uma inteligência pragmática, que se aplica diretamente ao mundo físico e cuja eficácia está ligada à precisão de um grupo profissional, ou de uma atividade humana. Rivette definia Hawks como um autor que trafegava pelos gêneros com absoluta modernidade. Anos antes, já estava destacando as futuras qualidades de Rio Bravo. Howard Hawks morreu em 26 de dezembro de 1977, aos 81 anos. Dos autores de sua geração, talvez somente Alfred Hitchcock tenha sido tão cultuado. Os críticos franceses que mais defendiam a politique des auteurs eram hawks-hitchcockianos. Em 1977, John Carpenter transplantou a história da cidadezinha do Oeste para o ambiente urbano e fez o policial Assalto à 13.ª DP, claro que, no caso dele, com um toque de fantástico.
Onde assistir:
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