Clássico do Dia: 'Um Corpo Que Cai' é um dos filmes mais impressionantes de Hitchcock
Todo dia um filme será destacado pelo crítico do 'Estado'; a segunda obra escolhida, que influenciou outros diretores, como Claude Chabrol e Arthur Penn, pode ser vista no YouTube
Uma enquete com cineastas para apontar, em 1995 - o ano do centenário do cinema -, quem eles consideravam o maior diretor de todos os tempos colocou no topo da lista o popular mestre do suspense, Alfred Hitchcock. Desde a sua primeira fase inglesa, ainda no período silencioso, e depois nos EUA e de volta à Inglaterra, até meados dos anos 1970, houve sempre um culto a Hitchcock. Na França, o oficiante era François Truffaut, que escreveu um livro sobre ele (O Cinema Segundo Alfred Hitchcock, no Brasil, Hitchcock Truffaut). Os críticos sempre gostaram de apontar os grandes filmes que o mestre dirigiu em cada década, e para muitos a trilogia edipiana formada por Psicose, Os Pássaros e Marnie, Confissões de Uma Ladra, no começo dos anos 1960, forma um bloco insuperável. Mesmo assim, quando se trata de escolher 'o' filme de Hitchcock, não dá outra. Vertigo/Um Corpo Que Cai, de 1958, concentra a preferência.
O próprio Hitchcock nutria sentimentos ambivalentes pelo filme. Repudiava-o por não ter sido o sucesso de público que esperava e guardava péssimas recordações de seu elenco, isso, é, da atriz. Hitchcock planejou o filme para Vera Miles, mas, na hora H, ela engravidou. Preferiu um filho ao filme, e isso foi imperdoável para ele. Para complicar, a atriz escolhida para substitui-la - Kim Novak -, o atordoava a toda hora com perguntas sobre as motivações das personagens. Hitchcock se exasperava. Só queria que ela calasse a boca e seguisse suas instruções. No retrospecto, em tempos de empoderamento, o homem que criou algumas das mais belas (e intensas) personagens femininas do cinema hoje poderia ser considerado um monstro.
Vertigo/Vertigem. Hitchcock baseou-se num romance da dupla Boileau/Narcejac, que já havia fornecido a Henri-Georges Clouzot, erroneamente definido como 'Hitchcock francês', o plot de um de seus maiores sucessos, As Diabólicas. Para Truffaut, e já com anos de distanciamento, o cineasta não teve dificuldade para resumir seu filme. É um poema necrófilo, a história de um homem que que dormir (fazer sexo) com uma morta. De cara, e antes dos créditos, o roteiro de Alec Coppel e Samuel A. Taylor estabelece o essencial sobre Scottie, o personagem de James Stewart. Policial em São Francisco - a cidade também é personagem -, ele participa de uma perseguição num telhado. Escorrega e fica pendurado na extremidade. Olha para baixo e tudo passa a rodar. Scottie sofre de vertigem, e os créditos de Saul Bass criam espirais para sugerir ao público como ele se sente. Scottie retira-se da polícia, assistido pela namorada fiel, mas sem sal, Barbara Bel Geddes. Um amigo lhe propõe uma tarefa. Bancar o detetive, seguindo sua mulher que vem apresentando um comportamento misterioso.
Entra em cena Kim Novak com o tailleur cinzento e o detalhe do coque que sugere uma fenda, quando visto por trás. Como Hitchcock e Freud nasceram um para o outro, o detalhe não é gratuito. Tem a ver com sexo. Scottie fica fascinado - o espectador também - pela mulher loira a quem segue no parque de sequoias, árvores centenárias, gigantescas; no cemitério, onde ela para diante do túmulo com a inscrição Carlota Valdès; e no museu, onde é atraída pelo quadro de uma dama antiga com o mesmo buquê que comprou numa loja de flores. Todos esses detalhes são significativos e culminam quando ela se joga na água, junto à conhecida ponte, e é salva por Scottie. Iniciam uma relação - "Você acredita que alguém do passado, alguém que morreu, pode se apossar de uma pessoa viva?"Carlota apossou-se de Kim, ou assim parece, e na cena culminante do primeiro movimento do filme, Scottie corre atrás dela quando sobe no campanário de uma igreja, para jogar-se. Só que ele não consegue subir - a vertigem o impede - e Carlota morre.
Scottie entra em depressão e, quando sai, encontra na rua, por acaso, Judy - Kim Novak de cabelo escuro. Ele se aproxima dela, transforma-a. Muda a cor do cabelo, o penteado, adota o tailleur cinza e, como num passe de mágica, consegue trazer Carlota do mundo dos mortos (D' Entre les Morts é o título do livro.) A evolução da trama mostra como 'Carlota', isso é, Kim, foi a isca num plano para envolver Scottie, por sua vertigem, num assassinato. As condições se repetem, agora com Judy transformada em Carlota. De novo o campanário, mas dessa vez Scottie vence a vertigem. Psicanaliticamente, cura-se - e desvenda o crime. Mas paga um preço, o amor.
Um Corpo Que Cai é um dos filmes mais impressionantes de Hitchcock. Tornou-se um dos mais influentes. Alain Resnais sempre admitiu que bebeu na fonte do mestre para construir o tempo, o embate entre passado e presente, de seu clássico Hiroshima, Meu Amor, de 1959. E a cena do campanário, o efeito combinado de lente de aproximação e afastamento para criar a vertigem no fosso da escadaria (que também remete ao coque) foi repetido dez anos mais tarde por Arthur Penn em Deixem-nos Viver e Claude Chabrol em Uma Mulher Infiel, ambos de 1969, e bem mais tarde por Wim Wenders em Estrela Solitária, de 2005. Quando o repórter citou para o próprio Wim os filmes de Chabrol e Penn, ele retrucou - "Copiamos todos de Hitchcock, e ele é o melhor de todos."
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25 filmes mais importantes da história do cinema - Todo mundo adora uma lista. E que tal os 25 filmes que você precisa ver antes de morrer - depois é que não seria, não é? O problema é que se podem escolher 25 filmes pela importância, porque fizeram avançar a linguagem, e 25 pelo afeto, os que a gente levaria para a ilha deserta. Vamos às listas (por ano de produção, não necessariamente hierarquia). A seguir, os 25 + (pela importância), indicados pelo crítico Luiz Carlos Merten
Foto: Divulgação / Estadão
1 - 'O Nascimento de Uma Nação', de David W. Griffith, 1915 - O filme que praticamente instituiu a narração cinematográfica. O bê-a-bá dos planos, da montagem. Tudo começou com a epopeia sulista de Griffith. O horror, o horror. Os racistas da Ku Klux Klan são os heróis, salvando a mocinha dos 'negros' que vão estuprá-la.
Foto: Divulgação / Estadão
2 - 'Nanook, o Esquimó', de Robert Flaherty, 1922 - O pai do documentário e sua 'cria' mais famosa, uma descrição minuciosa e envolvente da vida precária dos esquimós no Polo Norte. E, enquanto Flaherty saboreava o sucesso de seu grande filmes, Nanook morria de fome, num inverno particularmente difícil para sua comunidade.
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3 - 'Nosferatu, o Vampiro', de Friedrich W. Murnau, 1922 - A obra-prima expressionista de Murnau reconta a história de Drácula (o nome mudou por causa dos direitos) em cenários naturais. A ruptura com os cenários estilizados de O Gabinete do Dr. Caligari, de 1919, fez história.
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4 - 'O Encouraçado Potemkin', de Serguei M. Eisenstein, 1925 - Para comemorar os 20 anos dos levantes de Odessa, que pavimentaram o caminho da Revolução Russa, Eisenstein criou a sequência da escadaria. Os sete minutos considerados mais influentes da história do cinema continuam impressionantes, mas o cinema mudou muito desde então.
Foto: Divulgação / Estadão
5 - 'A Mãe', de V.I. Pudóvkin, 1926 - Os conceitos de montagem e interpretação de Pudóvkin o colocaram, historicamente, na contramão de Eisenstein. A história da mãe que se torna revolucionária por amor ao filho culmina na cena do 'degelo'. Outro marco dos anos de ouro do cinema russo, e do cinema em geral.
Foto: Divulgação / Estadão
'O Martírio de Joana D'Arc', de Carl T. Dreyer, 1928 - O poema da crueldade - Dreyer submeteu sua atriz aos tormentos que a própria Joana sofreu na fogueira. A lendária Falconetti enlouqueceu, mas ele a imortalizou nos primeiros planos que queria.
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7 - 'Um Homem com Uma Câmera', de Dziga-Vertov, 1929 - A história da película, da sua entrada na câmera à projeção. Dziga-Vertov criou o cinema-olho e o cinema-verdade. Seu experimentalismo foi essencial na (r)evolução da linguagem.
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8 - 'Luzes da Cidade', de Charles Chaplin, 1931 - Em pleno cinema sonoro, Chaplin continuou fazendo filmes mudos, mas com trilha sonora. Toda a sua arte transparece na cena em que a cega, tendo recuperado a visão, descobre que o vagabundo, Carlitos, é seu benfeitor. Para chegar àquela perfeição, o diretor experimentou durante quase um ano.
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9 - 'Rainha Cristina', de Rouben Mamoulian, 1933 - Garbo faz a rainha sueca que renunciou ao trono por amor. Mamoulian usa travellings de aproximação e afastamento e o efeito que se chama de 'íris' para contar sua história. O desfecho, a câmara que avança sobre o rosto de esfinge da estrela, é um dos mais belos e enigmáticos do cinema. E a cena da estalagem prenuncia Hiroshima, Meu Amor.
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10 - 'A Regra do Jogo', de Jean Renoir, 1939 - A luta de classes - as relações entre patrões e empregados - num fim de semana no castelo. A caçada, a dança macabra são dissecadas por críticos e historiadores como momentos-chave do cinema.
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11 - 'No Tempo das Diligências', de John Ford, 1939 - Ford sempre se considerou, acima de tudo, um diretor de westerns. E foi com esse que ele descobriu o cenário (Monument Valley) e a forma de filmar perseguições e tiroteios. As cenas dentro da diligência foram as que mais influenciaram Orson Welles, segundo o próprio.
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12 - 'Cidadão Kane', de Orson Welles, 1941 - O espectador que vê hoje o filme não dá conta de seu impacto. Welles revolucionou a forma de narrar - dissociou imagem e som, fragmentou o relato segundo diferentes visões, metaforizou as dimensões dos cenários e enfatizou a profundidade de campo. Mas o que provocou sensação foi o fato de o magnata da imprensa William Randolph Hearst se haver identificado na pele de Kane, o protagonista, fazendo de tudo para impedir o lançamento.
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13 - 'Roma, Cidade Aberta', de Roberto Rossellini, 1946 - Na Itália devastada pela guerra, Rossellini criou um novo realismo. O filme manifesto do neorrealismo trata justamente da resistência ao nazi-fascismo. Filme vencido, a mistura de atores e não profissionais, o relato episódico, tudo fez a fama do filme, mas hoje ele é muito contestado. Envelheceu, sem perder a importância.
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14 - 'Ladrões de Bicicletas', de Vittorio De Sica, 1948 - A obra-prima do neorrealismo. Tem gente que também contesta a estética, considerada miserabilista, de De Sica, mas a história do homem que procura com o filho sua bicicleta que foi roubada nas ruas de Roma ainda tem força (e comove). O desfecho é um dos mais belos do cinema.
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15 - 'O Manto Sagrado', de Henry Koster, 1953 - Muita gente vai estranhar a presença desse épico bíblico na lista. Mas além de ter sido o primeiro cinemascope - numa época em que Hollywood competia com a TV que lhe roubava o público -, o filme é reconhecido, hoje em dia, como uma das obras que, na época, no calor dos acontecimentos, dramatizava o macarthismo que criava listas negras na indústria. Veja por esse ângulo e é bem interessante.
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16 - 'Um Corpo Que Cai', de Alfred Hitchcock, 1958 - O suspense que, em 2012, na lista estabelecida pela revista inglesa Sight and Sound, foi considerado o melhor filme de todos os tempos, desbancando 'O Encouraçado Potemkin' e 'Cidadão Kane'. Homem sofre de vertigem ('Vertigo', o título original) e isso faz dele cúmplice numa trama de assassinato. Inovações técnicas (os movimentos de câmera e lentes nas cenas do mosteiro) e a questão do tempo, que também antecipa Alain Resnais, Hiroshima, Meu Amor.
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17 - 'Os Incompreendidos', de François Truffaut, 1959 - O filme manifesto da nouvelle vague, o movimento que revolucionou o cinema francês nos anos 1950. O diretor colocou elementos autobiográficos na história de Antoine Doinel, o garoto que cresce revoltado. O começo e o final são antológicos - a câmera passa pela pedra e o ferro até chegar ao rosto de Jean-Pierre Léaud, e mais tarde o acompanha na corrida para o mar, que forneceu a Glauber Rocha o desfecho de Deus e o Diabo na Terra do Sol, de 1964.
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18 - 'Fellini 8 1/2', de Federico Fellini, 1962 - Fellini viaja nos planos da realidade, da fantasia e da imaginação para retratar na tela a crise de um cineasta que, não por acaso, é ele. Impressionantes a beleza da fotografia e dos figurinos em preto e branco, e a trilha de Nino Rota.
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19 - 'Os Guarda-Chuvas do Amor', de Jacques Demy, 1964 - O filme (en)cantado de Demy. Como uma ópera, os diálogos são em forma de canções. Catherine Deneuve jura esperar por Nino Castelnuovo quando ele vai para a guerra. Mas ela não espera... Na época, o filme foi chamado de 'alienado'. Hoje, possui a fama, merecida, de ser um dos mais duros (a despeito da beleza) testemunhos da França da época, que vivia os efeitos da guerra na Argélia.
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20 - '2001, Uma Odisseia no Espaço', de Stanley Kubrick, 1968 - Da aurora do homem ao corte que atravessa milhões de anos de história e leva às naves que dançam no espaço ao som de Strauss, a ficção-científica de Kubrick é obra de um (grande) visionário. E o mistério do monolito negro nunca vai deixar de assombrar os cinéfilos.
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21 - 'Star Wars - Episódio IV - Uma Nova Esperança', de George Lucas, 1977 - O primeiro episódio da guerra nas estrelas de Lucas, que depois virou quarto. Não apenas criou uma mitologia que se amplia com o tempo como estabeleceu o conceito marqueteiro do filme-evento. Mais que a bilheteria, a fonte de renda é a linha (interminável) de produtos alinhados com a produção.
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22 - 'Pulp Fiction', de Quentin Tarantino, 1994 - Diversas histórias paralelas permitem ao diretor e roteirista Tarantino debater a ética na (ou da) criminalidade. Longos diálogos e explosões de violência estabeleceram novos patamares para o relato de filmes policiais (e de gângsteres). Uma das obras mais influentes dos anos 1990, e não apenas.
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23 - 'Dançando no Escuro', de Lars Von Trier, 2000 - Cannes, naquele ano, sediou um grande debate sobre as novas tecnologias e a Palma de Ouro consagrou justamente o filme (era seu marketing) feito com cem câmeras digitais. Uma imigrante é injustamente acusada de assassinato (e executada) nos EUA. Transformar esse tema pesado num musical não foi o menor desafio do diretor. E o filme ainda tem Bjork como atriz, cantora e autora da trilha. Mais importante que tudo - depois de 'Dançando no Escuro', métodos de produção e exibição começaram a mudar de forma acelerada em todo o mundo.
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24 - 'O Senhor dos Anéis - A Sociedade do Anel', de Peter Jackson, 2001 - O primeiro longa da trilogia que o diretor neozelandês adaptou da saga monumental de JRR Tolkien. A missão do hobbit Frodo - destruir o anel - o leva numa jornada de descoberta e autossuperação. E Jackson, desenvolvendo uma nova tecnologia - a motion capture -, cria o Góllum inteiramente no computador.
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25 - 'Avatar', de James Cameron, 2009 - Deficiente transforma-se, por meio de tecnologia de ponta, em seu gêmeo habitante do planeta mítico de Pandora. Com o digital, o diretor Cameron mostra que não existe limite para a imaginação.