Festival de Gramado trata o cinema brasileiro como ele merece
Produções nacionais são recebidas com pompa em momento de retomada da valorização nacional.
Quase todas as conversas do 51º Festival de Cinema Gramado envolvem o sentimento de retomada. É a volta do evento presencial em toda sua pompa, com tapete vermelho e estrelas brasileiras deixando suas marcas na calçada da fama, e o retorno das políticas públicas voltadas para a produção audiovisual depois de quatro anos nas trevas.
Apesar de ser realizado na Serra Gaúcha, em uma cidade turística que preza por suas raízes europeias (e por ser um dos poucos locais a ver, ocasionalmente, neve no país), o coração do festival é brasileiro e seu foco está na diversidade que “nos torna mais fortes”, como pontuou diversas vezes a Ministra da Cultura Margareth Menezes durante a sua participação na cerimônia de abertura. Aqui, curtas e longas-metragens selecionados, muitos produzidos com orçamentos super reduzidos pela falta de incentivos do governo anterior, são recebidos com todas as honras dos festivais internacionais.
Esse espaço é significativo, principalmente quando se lembra que, além de ser difícil fazer cinema no Brasil, é difícil também para que os filmes sejam vistos no cinema. Fato que felizmente pode mudar com o restabelecimento das cotas de tela, medida adotada em diversos países que garante um número mínimo de dias em que os cinemas devem exibir filmes nacionais e que foi abandonada pelo governo Bolsonaro. Apresentado pelo senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) no último dia 2 de agosto, o projeto que renova a Cota Tela até 2043 está em análise na Comissão de Assuntos Econômicos (CAE).
Tendo em vista esse sentimento, o filme que abriu o festival – 'Retratos Fantasmas', de Kléber Mendonça Filho – é ainda mais significativo. No documentário, o cineasta aborda a relação entre os espaços urbanos, o cinema e a passagem do tempo, do apartamento em que cresceu (e que serviu de cenário para os seus filmes) aos cinemas de rua de Recife, quase todos fechados atualmente. Resta o Cinema São Luiz, tombado como monumento histórico pelo governo de Pernambuco, reforçando mais uma vez a necessidade de políticas públicas que tratem a produção de arte e o acesso à cultura como uma necessidade básica da população. O longa, aliás, estreia em 24 de agosto e é a principal aposta para representar o Brasil no Oscar.
Em 2019, no auge do bolsonarismo, o Festival de Cinema de Gramado precisou lançar uma nota de repúdio aos ataques sofridos por artistas que protestavam contra o descaso do governo federal com o setor audiovisual e foram recebidos com palavras de ordem e pedras de gelo pelo público que frequentava os bares da Rua Coberta (por onde passa o tapete vermelho até o Palácio dos Festivais). Em 2023, o medo dos últimos anos se transformou em um alívio profundo e na esperança de que o futuro seja ainda mais frutífero para o cinema brasileiro (que, pela seleção desta edição, prova mais uma vez ser capaz de florescer mesmo em condições inóspitas).
O Festival de Cinema de Gramado vai até o dia 19 de agosto, quando serão entregues os Kikitos (tradicional troféu oferecido pelo evento) para os filmes em competição.