'Priscilla': o que ninguém queria contar sobre Elvis Presley
Assistimos ao novo filme de Sofia Coppola que mostra a história do Rei do Rock pelo ponto de vista de Priscilla Presley.
Existem figuras públicas tão adoradas que parecem intocáveis. Elvis Presley, para mim, é um desses casos. Ninguém quer falar que este ícone da música era imperfeito, que traía sua esposa ou usava drogas, apesar dos fatos. Ninguém até Sofia Coppola, que traz em 'Priscilla' uma versão de Elvis nunca vista antes na grande tela.
O filme chega aos cinemas somente em 26 de dezembro, mas o Entre Migas foi convidado pela Mubi para ir ao Festival do Rio e acompanhar a Gala de Encerramento, que exibiu 'Priscilla' pela primeira vez no Brasil. Pude então prestigiar o novo filme de Sofia Coppola, que mais uma vez traz o seu olhar único para contar a história de uma mulher emblemática.
O longa foca no relacionamento entre Elvis e Priscilla: no momento em que se conheceram, nos anos que viveram juntos e seus problemas. Parece algo que já vimos antes, mas como é baseado no livro "Elvis e Eu", escrito por Sandra Harmon e pela própria Priscilla Presley, que também é produtora-executiva do filme, tudo se passa pelo ponto de vista feminino. Não vemos os grandes shows e acontecimentos já conhecidos da vida de Elvis (retratados recentemente na cinebiografia assinada por Baz Luhrmann) e sim como Priscilla se sentia quando ele ficava meses viajando ou quando um rumor de um caso com outra mulher era exposto nos jornais. O roteiro marca a euforia e a solidão que era namorar e depois ser casada com Elvis Presley, um elemento inédito quando se trata das representações sobre a vida do "rei do rock".
O romance entre os dois sempre foi extremamente romantizado, como se tivesse sido um grande conto de fadas, mesmo ela tendo o conhecido quando ainda era uma adolescente, que ainda morava com os pais e frequentava a escola. Por ser uma figura pública muito adorada até hoje, esse foi sempre um assunto muito delicado, que na maioria das vezes foi ignorado para evitar polêmicas. Já no filme, o assunto é abordado logo no início. Priscilla Beaulieu (como era seu nome antes de casar com o cantor) estava sentada em uma lanchonete na Alemanha, tomando uma Coca-Cola, quando um homem claramente mais velho a convida para ir a uma festa na casa de Elvis, que servia ao exército na época. Seu pai, também militar, hesita, mas acaba deixando a menina ir à casa do cantor.
Coppola não esconde a inocência de Priscilla ou seu deslumbramento, o que é impecavelmente atuado por Cailee Spaeny, e também não tenta amenizar o interesse de Elvis nela, que encontra na menina alguém para conversar e desabafar. Ele fala sobre a morte de sua mãe, suas aspirações, e convence o pai da garota a permitir o relacionamento e até a sua mudança para Graceland. Uma relação já bem problemática e que conta com mais um fator agravante: o vício do cantor nas pílulas. Ele não só as oferece para uma Priscilla menor de idade, como afetam o seu humor, tornando-o uma pessoa imprevisível, que vai do carinhoso ao bravo e violento em segundos.
Mas não se engane achando que o Elvis é tratado como um grande vilão nessa história de amor. Como o filme é do ponto de vista de Priscilla, seu retrato é humano, o oposto do Rei, do intocável, comumente retratado. Muitas vezes vemos que seu comportamento é um reflexo da época, que via a mulher como feita para ficar em casa, criar a sua filha e esperar pela chegada de seu marido. Ela não deve reclamar, pois é "bem cuidada", e deve se vestir conforme ele quiser – inclusive, o visual característico de Priscilla no filme, com o cabelo e um delineado preto bem definido, é escolhido por Elvis. Esse traço, pelo olhar de Coppola e na interpretação impecável de Jacob Elordi (que eu não enxergava como o Elvis até assistir ao filme), não o coloca como uma pessoa ruim, ainda que questionável. Não há vilões ou heróis nessa história, existe apenas a vida de duas pessoas que se conheceram, se amaram e que não deram certo por diversos motivos.
Fiquei sinceramente chocada ao ver Elvis representado dessa forma e o olhar feminino de Sofia Coppola é imprescindível para a quebra da visão do bom moço, sorridente e extremamente apaixonado por sua esposa. Essa abordagem, somada à direção de arte, que nos transporta para os anos 1950/1960, a edição e a trilha sonora, fazem de 'Priscilla' um filme que viaja entre o sonho e o pesadelo. É um pouco transcendental, mas ao mesmo tempo palatável, algo que sempre sinto ao assistir qualquer filme da diretora.
Em uma entrevista em que Coppola e Priscilla Presley estão lado a lado, a ex-mulher de Elvis diz que nunca faria esse filme com outra pessoa a não ser a diretora. Depois de assistí-lo, entendi a afirmação. Ninguém, além de Coppola, conseguiria mostrar esse outro lado de Elvis sem recorrer a julgamentos. O objetivo aqui era apenas mostrar o lado de Priscilla nessa história, o que foi feito com maestria.