Como filme iraniano sobre amor e solidão levou diretores ao tribunal: 'Temos que ficar aqui para lutar'
Diretores de 'Meu Bolo Favorito' tiveram os passaportes confiscados e foram proibidos de trabalhar; em relato à Rolling Stone Brasil, eles contam como o filme, em exibição nos cinemas, também é um retrato do Irã pós-revolução
Em Meu Bolo Favorito, Mahin, uma mulher de 70 anos interpretada por Lily Farhadpour, rompe com a rotina ao encontrar um homem solitário, como ela, e o convidar para uma noite regada a vinho e boas conversas em sua casa.
O filme iraniano rendeu aos diretores Maryam Moghadam e Behtash Sanaeeha prêmios no Festival Internacional de Cinema de Berlim, exibições em salas de cinema ao redor do mundo — inclusive no Brasil — e três acusações criminais.
O casal responde por propaganda contra o regime iraniano, desrespeito às regras islâmicas e por espalhar prostituição e libertinagem. Com os passaportes confiscados, Moghadam e Sanaeeha concederam entrevista à Rolling Stone Brasil sentados em sua sala de estar, cercados por livros e um de seus quatro gatos.
"Tudo começou quando a Guarda Revolucionária Iraniana invadiu a casa do nosso editor e levou todos os computadores e HDs", contou Sanaeeha. "Tentaram impedir que exibíssemos o filme em qualquer lugar e, quando entenderam que o longa estava indo para o Berlinale, tentaram nos forçar a retirar o filme do festival. Dissémos que isso estava fora do nosso alcance, que era decisão dos produtores e distribuidores. Começaram o julgamento naquele dia."
Ele continuou: "Quando Maryam e eu tentamos viajar de Teerã para Paris para terminar a pós-produção, eles confiscaram nossos passaportes. O julgamento está acontecendo há cerca de 20 meses. [...] Geralmente, vamos à corte uma vez ao mês para sessões de interrogatório. Agora estamos esperando a decisão final da Corte Revolucionária".
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Segundo Moghadam, eles "estavam esperando por isso desde a pré-produção, que descobrissem o que" estavam fazendo. Calejado, o casal usou o roteiro de um curta-metragem assinado por outra pessoa para garantir autorização do Ministério da Cultura e Orientação Islâmica para as filmagens.
Os atores que embarcaram na empreitada também sofreram represálias: Farhadpour e Esmail Mehrabi, que assumiu o papel de Faramarz, não foram denunciados por propaganda contra o regime e nem proibidos de deixar o país, mas ainda respondem aos outros dois processos e foram banidos do trabalho.
Ainda que pudessem, os diretores afirmaram que não deixariam o Irã — "não para valer", declarou Moghadam.
Pensamos que temos que ficar aqui e fazer mais filmes contando a história da nossa nação. Como costumamos dizer: isso é como o fronte da batalha. Temos que ficar aqui para lutar. Não podemos nos mudar para outro lugar e esperar que um dia possamos voltar. Em 45 anos, perdemos tudo no Irã, nossa nação, e esperamos recuperar essas coisas. É o mínimo que podemos fazer, continuar aqui. - Maryam Moghadam
O discurso de Moghadam lembra, de certo modo, o da personagem Mahin. A solidão dela é construída por meio da morte de seu marido e do afastamento da filha, que se mudou para a Europa. Assim como os diretores do longa-metragem, ela não expressa interesse em deixar o Irã.
É dessa forma que Moghadam e Sanaeeha demonstram "a realidade da vida moderna" em Meu Bolo Favorito. A questão da rotina solitária se torna mais profunda quando eles dão a Mahin uma família distante e um grupo de amigas que a visita de vez em quando, indicando ao mesmo tempo que, em alguns casos, isso pode não ser o suficiente.
"Nenhum pai ou mãe deveria esperar que seus filhos fiquem com eles para sempre, porque a maioria não fica", disse Maryam. "Ter filhos na expectativa de que você não vai ficar sozinho é apenas ficção — isso não é real."
Behtash acrescentou: "Especialmente no Irã, você vê muitas famílias que, devido aos problemas políticos que vivemos em nosso país, têm que se separar e morar em países distantes. Infelizmente, isso está se tornando normal no Irã. Pais e mães se comunicam com seus filhos apenas pelo Zoom. Nem todos podem voltar ao país, por razões políticas. Às vezes, os pais não conseguem o visto para a Europa ou os Estados Unidos... Então, essa solidão é normal para famílias iranianas".
Deixar o Irã também não é uma possibilidade — ou mesmo desejo — de todos os jovens. "A nova geração questiona todos os dias por que os mais velhos fizeram a revolução", pontuou Sanaeeha.
A revolução a que ele se refere é aquela de 1979, impulsionada por cidadãos que pediam por liberdade e democracia. O povo garantiu uma nova constituição, que deu origem à República Islâmica. No entanto, constantes violações dos Direitos Humanos têm levado iranianos a protestos contra o governo atual.
"Tentamos ter esses dois protagonistas de uma geração que experimentou a vida antes da revolução, porque queríamos que eles soubessem como era o Irã quando era um país livre e como era a liberdade social", argumentou o diretor.
A geração mais nova é muito corajosa. Os jovens estão tentando mudar a situação e trazer a liberdade de volta, enquanto os mais velhos estão tentando apoiá-los. Por isto escolhemos Faramarz e Mahim para formar um casal mais velho: queríamos que eles vivessem, em uma noite, toda a liberdade que tinham antes da revolução. - Behtash Sanaeeha
Em Meu Bolo Favorito, diferente de diversos outros títulos iranianos, as amigas de Mahin não usam hijab quando se reúnem. Na rua, em determinado momento do filme, uma mulher deixa parte do cabelo à mostra enquanto passeia por um parque, até que é abordada pela polícia da moralidade.
A cena foi escrita antes do caso de Mahsa Amini, que gerou manifestações contrárias ao regime do Irã. A jovem de 22 anos faleceu em 2022 após ser detida pela polícia da moralidade sob a acusação de que não estava usando o hijab corretamente.
"Escrevemos a cena anos antes disso", confessou Maryam. "Começamos a gravar o filme semanas antes da morte de Mahsa. Isso não aconteceu apenas uma vez ou apenas com Mahsa. Acontece todos os dias. Há 45 anos, mulheres são envolvidas em problemas assim que saem de casa, quando encontram a polícia da moralidade."
Elas são assediadas, presas, punidas por um pequeno pedaço de cabelo ou algo do tipo. Isso faz parte do que é ser uma mulher no Irã. Não é apenas sobre algo que aconteceu há dois anos. - Maryam Moghadam
Sem spoilers, Sanaeeha ainda explicou as motivações que levaram sua esposa e ele a terminarem Meu Bolo Favorito da forma como o fizeram: "Não é um final triste. É um final real sobre como a vida é importante e como devemos celebrá-la".
Meu Bolo Favorito passeia pela realidade iraniana ao decorrer de uma noite de ficção. O filme também desmitifica distanciamento entre Oriente Médio e o restante do mundo através do retrato da solidão.
Distribuído pela Imovision, o longa está em exibição em cinemas de todo o Brasil. Confira abaixo sinopse e trailer:
Aos 70 anos, Mahin vive sozinha no Teerã desde a morte do marido e a partida da filha para a Europa. Um chá da tarde com amigas quebra a rotina solitária e a faz revitalizar sua vida amorosa, mas à medida que Mahin se abre para um novo romance, o que começa como um encontro inesperado rapidamente evolui para uma noite imprevisível e inesquecível.