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Crítica: Em 'O Acontecimento', drama da jovem grávida evolui, na tela, com toda a força do fato real

Baseado no livro de Annie Ernaux, o filme tem tom realista - e próximo do insuportável em seus momentos mais agudos

13 jul 2022 - 05h11
(atualizado às 07h29)
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Uma jovem de 23 anos engravida e não pode ter o filho sob o risco de comprometer suas aspirações de estudante e futura escritora. Decide abortar. O Acontecimento conta a sua história em busca desse procedimento num país em que a interrupção voluntária da gravidez é ainda um crime punível com prisão para todos os envolvidos. Estamos na França em 1963 e a história - autobiográfica - é contada no livro de Annie Ernaux O Acontecimento (Editora Fósforo), transformado em filme, vencedor do Festival de Veneza, pela diretora Audrey Diwan.

Anne, interpretada por Anamaria Vartolomei, é uma aluna brilhante. Deseja estudar Letras e tornar-se escritora. Caso consiga, será a primeira pessoa da sua família a cursar a universidade. Vinda de um meio modesto, leva a vida a sério, é talentosa e estudiosa. A gravidez é fruto de relacionamento casual com um rapaz de outra cidade (Bordeaux). A fechada sociedade de Angoulême, onde ela mora, não permite que fale sobre o assunto. Anne enfrenta praticamente sozinha o problema. Suas colegas a discriminam quando ficam sabendo do seu estado. O rapaz que a engravidou tira o corpo fora. Anne nem pensa em apelar para a família conservadora. Enquanto isso, o tempo vai passando e tornando a intervenção mais complicada. Sem cabeça para os estudos, ela se arrisca ainda a perder a chance de entrar para a universidade. Seus professores não entendem o que aconteceu com a aluna, outrora brilhante. E ela não pode lhes dizer.

Sabendo que se trata de relato de um caso real, de fato vivido pela escritora Annie Ernaux em sua juventude, o filme torna-se ainda mais pungente. Ainda mais porque a diretora decidiu, de maneira acertada, transpor para a tela o estilo despojado em que a obra literária é escrita. Annie escreve livros pequenos, de menos de 100 páginas, porém compactos, em estilo seco (à la Graciliano Ramos), com raros adjetivos, objetivos e sem qualquer traço de autocomiseração.

A filmagem adota o mesmo trajeto - por outros meios, é claro. A câmera segue de muito perto a personagem interpretada por Anamaria. É um registro íntimo, porém tenso, já que em boa parte do seu tempo se assume como thriller, uma vertiginosa corrida contra o tempo e a incompreensão social.

O tom é realista - e próximo do insuportável em seus momentos mais agudos. No entanto, sente-se a preocupação da diretora em evitar cenas mais brutais. Nem tudo que pode ser dito, por escrito, deve ser mostrado. Há uma força adicional da imagem que não convém negligenciar, sob pena de tornar intoleráveis determinadas sequências.

Esse cuidado, no entanto, não suaviza o filme. Apenas evita que seja tachado de apelativo. O que não vemos, podemos imaginar. E talvez a sugestão seja ainda mais forte que a exposição explícita.

Do ponto de vista conceitual, a versão cinematográfica segue a estratégia buscada por Annie Ernaux em seus livros (O Acontecimento, O Lugar, Os Anos, todos pela Fósforo): joga as questões pessoais do eu ficcional contra um pano de fundo social e histórico. Por exemplo, o ano de 1963 é lembrado como aquele do assassinato de John Kennedy, de intensas manifestações sociais e da Guerra da Argélia, fato histórico fundamental numa França dividida.

Além disso, a personagem é sempre vista em sua condição social anfíbia - vem da classe baixa, mas tem aspirações intelectuais e de ascensão social. É, na terminologia francesa, uma "transfuge de classe". Isto é, alguém dividido entre sua classe social de origem e aquela outra a que aspira ou passa a viver, a dos intelectuais de prestígio, professores de alto nível, escritores publicados e respeitados. Essa ambivalência, um pé em cada canoa, produz no indivíduo contradições profundas e angústias não menos complexas.

COTAÇÃO: ÓTIMO

Estadão
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