Em "Dívida de Honra", Tommy Lee Jones testa os limites do western
“Dívida de Honra”, segundo longa para cinema dirigido por Tommy Lee Jones, desde sua estreia no Festival de Cannes de 2014, tem sido chamado, não sem razão, de um western feminista. Essa é uma expressão que encerra em si uma espécie de paradoxo, uma vez que o gênero é, por excelência, terra de homens solitários e damas em apuros, que são, em geral, personagens secundárias e dependentes dos homens para sua salvação.
O longa de Lee Jones – baseado num romance de Glendon Swarthout, recém-lançado no Brasil - materializa esse paradoxo. A personagem central é Mary Bee Cuddy, interpretada por uma Hilary Swank que há muito não estava tão bem num papel, mulher solteira por opção, cujo trabalho árduo e convicções éticas e morais a confortam numa vida conforme escolheu. Isso, no entanto, não agrada às pessoas da região fronteiriça onde mora, alguns anos antes da Guerra Civil Americana. Talvez seja alguma espécie de solidão que a pressiona a procurar um marido, mas isso falha, quando o homem com quem tenta se unir a caracteriza como mandona e sem graça.
Mary Bee está longe de ser sem graça. Pelo contrário, é destemida e determinada, conforme o necessário para viver por sua conta naquele lugar, naquela época. Ainda assim, por mais que seja tudo isso e um pouco mais, uma mulher (tanto naquele tempo, quanto hoje) é julgada por essas características. As mulheres aqui transitam entre a solitária corajosa que, se necessário passa por cima dos homens, e as loucas desvairadas, que precisam ser internadas numa instituição.
Theoline Belknap (Miranda Otto) afogou seu bebê e agora não fala mais. A norueguesa Gro Svendsen (Sonja Richter) só grita e morde. E, por fim, Arabella Sours (Grace Gummer) não larga sua boneca de pano, substituta dos filhos que perdeu. Quando ninguém quer mais saber dessas mulheres – especialmente seus maridos - Mary Bee aceita levá-las para uma instituição, onde receberão os cuidados necessários.
Como não pode, e não deve, viajar sozinha, Mary Bee precisa da companhia de um homem. O único que encontra pelo caminho é George Briggs (Lee Jones), fora-da-lei deixado preso a uma árvore para morrer enforcado. Ela salva sua vida e, em troca, cobra que a acompanhe – e lhe promete um pagamento em dinheiro quando chegarem ao destino. Com o trio de mulheres amarradas num vagão, embarcam numa viagem que beira aquela arquetípica do oeste, com direito a ladrões e índios ameaçando a vida dos personagens. Mas agora fazem o caminho inverso – rumo ao leste.
A transição, no entanto, acontece ao longo dessa jornada. A dupla central, Mary Bee e Briggs, vai se humanizando, ganhando nuances e profundidade. Como o western é um gênero, por excelência, que ressalta o universo masculino, o do cowboy, do homem solitário e destemido – o filme terá de pagar esse preço.
Mas, é bom ressaltar, não é um defeito, ou problema, pelo contrário. A reviravolta na narrativa, que obriga Briggs a assumir o papel central, é uma espécie de fissura que capta muito bem as limitações e imposições da sociedade da época – que, na verdade, não é tão diferente hoje. A personagem de Hilary, nesse mundo, é, por assim dizer, tão “alienígena” quanto a de Scarlett Johansson, em “Sob a Pele”, por exemplo. Mulheres cujo comportamento causa estranhamento e criam à sua volta uma pulsão para ser sufocadas.
Então surge a pergunta: até que ponto um filme dirigido por um homem, baseado num romance escrito por outro, é capaz de ser feminista? Para usar uma expressão que anda em voga: eles roubam o protagonismo da narrativa da mulher? Sim e não. É preciso ir além do que “Dívida de Honra” mostra, é preciso detectar que ao fazer tal ato – transferir o protagonismo para o homem – o longa materializa e denuncia o espírito de seu tempo, expondo as barreiras que precisam ser extrapoladas. Ao seu modo, numa espécie de forma reversa, o filme de Lee Jones busca o fortalecimento da narrativa feminina pela sua contenção.
A expansão para o oeste, em “Dívida de Honra” já não é mais a questão, o povoado parece muito bem estabelecido. O que se torna agora um problema é lidar com aqueles que não são capazes de se adaptar à ordem estabelecida – em outras palavras, aqueles que contestam (algo que simbolicamente está na loucura do trio de mulheres). Como lidar com essas pessoas? Ora, fácil, mandando-as de volta para o outro lado do país. O Velho Oeste não é mais lugar apropriado para mulheres que não se contentam com o pouco que lhes é oferecido – e, parecendo ecoar o filme, tampouco nosso mundo contemporâneo.
(Por Alysson Oliveira, do Cineweb)
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