'Enterre Seus Mortos': Esquisito, novo filme de Marco Dutra com Selton Mello é muita coisa, menos covarde
Filme é adaptação do livro homônimo de Ana Paula Maia.
Não há palavra melhor do que "esquisito" para resumir o novo filme de Marco Dutra, uma mistura de faroeste com distopia pós-apocalíptica embalada a "Titanic", muito sangue e uma seita liderada por uma criança estranha.
Antes mesmo da exibição para o público na Cinemateca Brasileira durante a 48ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, o produtor Rodrigo Teixeira avisou que "Enterre Seus Mortos" era diferente do que o público está habituado a ver de obras brasileiras, e sua fala não era um exagero. O filme é intenso, muito bem filmado, desprendido da necessidade de explicações lógicas e, coroando tudo isso, faz um comentário firme sobre os flertes com o "fim dos tempos" que rodeiam o Brasil.
Tudo isso, posto desta forma, já atiça a curiosidade de cara. Mas manter esse formato equilibrado durante pouco mais de duas horas requer muito jogo de cintura.
Por pouco mais de uma hora, Marco Dutra é muito feliz em sua adaptação do livro homônimo de Ana Paula Maia ("Enterre Seus Mortos", Companhia das Letras), que conta a história de Edgar Wilson, um simples executor de tarefas que trabalha no órgão responsável por recolher animais mortos em estradas (O.R.A.M.) e levá-los para um depósito onde são triturados num grande moedor. Ancorado por uma fotografia estourada e planos abertos que ressaltam o impacto de um cenário destruído por alguma coisa que não se sabe o que é, o filme não demora em estabelecer sua primeira (e talvez única) verdade: estamos em uma realidade desoladora de fim do mundo. A cidade fictícia na qual a história se passa, Abalurdes, é um lugar esquecido pelo tempo em que as pessoas afogam a falta de esperança na bebida ou em uma religião com cara de seita que cresce de maneira assustadora, mas não estranha para quem enxerga nas entrelinhas.
Neste contexto, que pode ser interpretado como um retrato em miniatura do que se tornou o Brasil nos últimos anos, é o olhar burocrático do personagem de Selton Mello que convida o espectador para adentrar aquele mundo. É importante ressaltar que Dutra não tem interesse em explicar por que as fronteiras entre a vida e a morte são cada vez mais tênues, por que crianças parecem ser a fonte do mal e qual é a lógica desta seita que parece saída de algum documentário macabro. Que fique a cargo da interpretação de cada um. Há referências Lovecraftianas na concepção deste cenário, misturadas a um olhar niilista sobre a vida, que estabelecem o tom de um universo em pedaços que não tem pudor ao dizer que não há ali salvação. A sorte é de quem aceita o convite para mergulhar nessa proposta.
Selton Mello e Marjorie Estiano, que vêm em uma leva impressionante de grandes lançamentos nos últimos meses, dão vida a Edgar e Nete, ele o funcionário e ela a chefe que passa a ele as chamadas das ocorrências -- ao mesmo tempo, os dois mantêm um relacionamento e um desejo de ir embora daquele local acabado. A dinâmica complexa desse namoro, em que ideias opostas parecem colidir a todo momento, faz com que as diferenças entre os dois transpareçam cada vez de forma mais evidente, o que começa a nos dar um certo fio para nos conduzir pela história. A dureza de Edgar, que executa seu trabalho de modo prático e objetivo, é contrastada com a boa vontade de sua amada de buscar conforto ou respostas na seita religiosa com a criança bizarra e chás inexplicados. Há um incômodo no ar o tempo todo, como se o filme se recusasse a deixar o espectador confortável.
É este ceticismo de Edgar Wilson que torna o longa interessante, pois impede que ele se torne um panfleto raso que alerta para os perigos do extremismo, da ultra vigilância e da tomada fundamentalista. Contrastado pelo colega Tomás (Danilo Grangheia, excepcional), padre excomungado que se preocupa em dar a extrema unção a pessoas moribundas nas estradas, Edgar faz com que o público seja constantemente testado no ponto de interseção entre duas ideias dissonantes, já que um se preocupa estritamente com os animais e o outro faz questão de recordar a todo momento que a humanidade, de certa forma, persiste.
Neste tom que navega entre o onírico e o existencial, é possível se lembrar de obras de David Lynch, mas pesa contra o filme uma espécie de mudança de rota que acontece na metade final. A partir de determinado momento, Dutra começa a se explicar demais, e toda essa aura indagadora fica de escanteio. A impressão que fica é que Edgar Wilson e Tomás estão cumprindo missões em um jogo de videogame, e todo o impacto da intrigante primeira metade vai se esvaziando.
Mesmo assim, "Enterre Seus Mortos" é um aceno sóbrio para o realismo fantástico com elementos impressionantes. Mesmo com alguns incômodos pela carga hermética e a duração desnecessariamente longa, o novo filme de Marco Dutra é acima de tudo corajoso, pois segue irredutível em sua proposta de fazer algo diferente, sobretudo num cenário em que tanto se espera filmes formatados dentro de um certo padrão. É um lembrete pertinente que Dutra (assim como Juliana Rojas fez no seu recente "Cidade; Campo") ousa estar na vanguarda e abrir novos caminhos, custe o que custar.