Governo Bolsonaro tentou dar "golpe" na indicação brasileira ao Oscar
Presidente da Academia Brasileira de Cinema denuncia ação da Secretaria de Cultura para mudar as regras e tomar o controle do prêmio em 2020
Tentativa de golpe nas indicações
A presidente da Academia Brasileira de Cinema, Renata Almeida Magalhães, denunciou nesta quinta (23/1), em artigo publicado no jornal O Globo, que o governo de Jair Bolsonaro tentou interferir no processo de indicação de filme brasileiro ao Oscar em 2020. A Secretaria de Cultura pressionou para alterar as regras do convênio entre o governo e a Academia, buscando maior presença e controle governamental sobre a comissão responsável pela escolha.
"Durante muito tempo a indicação do filme estrangeiro ao Oscar era uma coisa meio secundária, uma festa da indústria para a indústria americana. Já foi feita pelo Itamaraty, pela Embrafilme. Com a criação do Ministério da Cultura, em 1985, a tarefa passou a ser unicamente atribuição ministerial", contou Renata.
Este controle impediu, por exemplo, "Aquarius" de ser indicado ao Oscar em 2016, durante o governo Temer, com a comissão optando por "Pequeno Segredo". A seleção gerou polêmica na época e influenciou uma mudança para o ano seguinte. A partir de 2017, o Ministério da Cultura assinou um contrato de cooperação técnica com a Academia, estabelecendo que o filme brasileiro seria indicado por uma comissão cuja maioria seria formada por cineastas, mas ainda com a participação de integrantes do governo.
Em 2020, o governo Bolsonaro tentou retomar o controle das indicações por motivos ideológicos.
Segundo Renata, a justificativa usada pelo governo foi a falsa alegação de que a Academia havia indicado "Democracia em Vertigem" na categoria Melhor Filme Internacional. O longa de Petra Costa era contrário ao governo Bolsonaro. "O Secretário de Cultura da época, convencido que havíamos indicado 'Democracia em Vertigem' na categoria Melhor Filme Internacional, quis mudar as regras do convênio, fazendo com que o governo tivesse a maioria dos votos."
Renata reforçou que a indicação do documentário de Petra Costa não foi responsabilidade da Academia: "Tentamos explicar que não era verdade. O Brasil naquele ano indicou o filme de Karim Aïnouz, 'A Vida Invisível'. 'Democracia em Vertigem', não sem mérito, concorria na categoria de Melhor Filme Documentário pelas regras gerais do Oscar (ter sido exibido em território americano, por exemplo), inscrito pela Netflix, produtora do filme. Eles não entenderam."
"Estávamos num impasse, à beira de um golpe no âmbito do Oscar/Academia Brasileira de Cinema", declarou a presidente.
Intervenção da Academia de Hollywood
Diante da tentativa de interferência, a questão foi levada à Academia de Artes e Ciências Cinematográficas dos Estados Unidos (Ampas). "Expusemos a questão à Ampas - responsável pela realização do Oscar -, que nos enviou um documento nos dando total autonomia na indicação do filme que representaria nosso país. Trata-se de uma escolha dos cineastas", explicou Renata.
Com o documento particular, a Ampas garantiu total autonomia à Academia Brasileira de Cinema na escolha do filme que representaria o país na premiação. Foi um contragolpe que tirou o governo da comissão, dando total independência à entidade dos cineasta brasileiros para determinar suas escolhas.
Desde 2021, a Academia Brasileira de Cinema é a única responsável por coordenar a indicação de filmes ao Oscar e outros prêmios similares no âmbito da Federação Ibero-Americana de Academias de Artes e Ciências Cinematográficas (Fiacine). A entidade também organiza o Prêmio Grande Otelo, considerado o Oscar brasileiro.
Impacto e reflexões sobre liberdade cultural
Renata destacou a importância de preservar a liberdade na escolha de filmes que representam o Brasil internacionalmente. Ela alertou que, caso o governo tivesse conseguido alterar as regras em 2020, as indicações teriam viés político. Num governo de direita, "Ainda Estou Aqui", de Walter Salles, poderia não alcançar as indicações ao Oscar como Melhor Filme, Melhor Filme Internacional e Melhor Atriz para Fernanda Torres.
A presidente ainda fez um paralelo entre a tentativa de controle do processo de indicação e os ataques à democracia brasileira, como os ocorridos em 8 de janeiro de 2023. "Imaginem se tivessem conseguido dar um golpe na indicação do Oscar em 2020, assim como tentaram com o país em 8 de janeiro de 2023?", questionou Renata. "'Ainda Estou Aqui' provavelmente não seria indicado. E tenho até medo de imaginar onde poderíamos estar agora", concluiu.
O espaço segue aberto para posicionamentos, declarações e atualizações sobre a denúncia.