Houve uma época em que Hollywood de fato fazia propaganda socialista. E o governo aprovava; entenda
Onda de filmes lançados entre 1942 e 1945 por estúdios americanos elogiavam o regime soviético com o objetivo de tranquilizar a população a respeito da aliança entre EUA e URSS durante a Segunda Guerra; conheça histórias
Era noite de cinema no Kremlin. A data era 23 de maio de 1943. O Exército Vermelho tinha derrotado os alemães na Batalha de Stalingrado apenas três meses antes. Pela primeira vez, parecia que os Aliados poderiam vencer.
E agora, para celebrar a aliança entre a União Soviética e os Estados Unidos, Josef Stalin decidira oferecer um banquete no Kremlin. Apesar do racionamento dos tempos de guerra, não faltaram pratos deliciosos. A vodca corria livre, segundo o historiador Todd Bennett.
O filme era pura propaganda stalinista. Retratava o ditador como um líder benevolente e a União Soviética como uma sociedade fraterna, livre de qualquer repressão. Apresentava como justos os julgamentos-espetáculo de Moscou, durante os quais os rivais de Stalin foram incriminados. E acusava Leon Trótski - o bolchevique judeu assassinado por ordem de Stalin em 1940 - de ter sido um agente nazista.
Mas Missão em Moscou não fora realizado pelos estúdios que obedeciam ao Kremlin nem examinado pelos censores de Stalin. Vinha de um estúdio de Hollywood, a Warner Bros. Pictures, e fora aprovado pelos censores do governo americano.
Hoje, os conservadores acusam Hollywood de espalhar propaganda esquerdista. Durante a Segunda Guerra Mundial, Hollywood fez exatamente isso. E teve apoio total do governo dos Estados Unidos.
Missão em Moscou fez parte de uma onda de filmes realizados entre 1942 e 1945 que elogiavam o regime soviético. Entre eles se encontravam A Estrela do Norte, da RKO, sobre ucranianos repelindo invasores nazistas; Três Heroínas Russas, da United Artists, sobre o romance de uma enfermeira russa com um soldado americano; e Contra-Ataque, da Columbia, sobre soldados do Exército Vermelho enfrentando a Wehrmacht.
Missão em Moscou foi dirigido por Michael Curtiz, que já tinha dirigido Casablanca, mas era ideia de Davies. Baseado em suas memórias, o filme dramatizava sua passagem pela embaixada americana em Moscou antes da guerra. Walter Huston interpretou Davies. No prólogo do filme, o Davies da vida real garantia aos espectadores que estavam prestes a receber uma cartilha "honesta" sobre a União Soviética.
Stalin aprovou. Ele foi "muito generoso" em seus "elogios ao filme", escreveu Davies em uma carta no dia seguinte. Logo depois, a Missão em Moscou estreou em toda a URSS.
O filme foi lançado nos Estados Unidos com grande alarde em abril de 1943, segundo os historiadores Ronald e Allis Radosh. O orçamento de marketing foi de US$ 500 mil - perto de US$ 9 milhões em valor atual. Houve uma estreia luminosa em Washington, com a presença de políticos e repórteres.
O New York Times o definiu como "o filme mais franco sobre um tema político já feito por um estúdio americano". Missão em Moscou certamente não escondia sua agenda: fazer com que os americanos apreciassem a União Soviética e angariar apoio para a aliança soviético-americana.
O longa conta a história de um maestro americano, interpretado por Robert Taylor, que viaja pela URSS. Sutileza não é o forte do filme. Em certa cena, ele janta em um restaurante movimentado de Moscou e exclama: "Que incrível! Todo mundo parece estar se divertindo muito". Ele então se vira para sua companhia, uma bela pianista russa, e diz a ela: "Se eu não soubesse que a conheci em Moscou, você poderia muito bem ser uma moça americana" (A atriz, Susan Peters, nasceu em Spokane, Washington).
No meio de Canção da Rússia, os nazistas invadem a União Soviética e Stalin faz um discurso empolgante à nação. "Nossa guerra pela liberdade do nosso país irá se fundir com as lutas dos povos da América pela sua independência, pelas liberdades democráticas e contra a escravização pelos exércitos fascistas de Hitler", proclama ele. (O verdadeiro Stalin nunca foi muito fã das liberdades democráticas americanas).
Os filmes pró-soviéticos desencadearam uma guerra cultural no front interno - sobretudo Missão em Moscou. Devido aos laços estreitos de Davies com FDR, o filme se tornou um para-raios no debate político.
O New York Times elogiou sua "ousadia" e disse que "deveria ser uma influência valiosa para um pensamento mais claro e profundo". Vários ramos da Legião Americana, uma organização de veteranos, apoiaram o filme publicamente.
Mas as críticas foram severas. O filósofo John Dewey denunciou Missão em Moscou como "o primeiro exemplo de propaganda totalitária para o consumo de massa no nosso país". O romancista James Agee o caracterizou como "uma mistura de stalinismo com New Deal e Hollywood (...) um retrato notável de como os produtores do filme imaginam que o público americano deveria pensar que a União Soviética é - uma grande gororoba enlatada de dois milhões de dólares".
Os republicanos se enfureceram. O Comitê Nacional Republicano rejeitou o filme como "propaganda do New Deal". O deputado Marion T. Bennett (Missouri) disse que Hollywood "perdeu completamente a cabeça e exagerou em sua tentativa de fazer o comunismo parecer bom", insistindo que a aliança soviético-americana deveria ser apenas "temporária".
Mas Roosevelt esperava que a aliança durasse para além da guerra contra os nazistas. Queria uma parceria com os soviéticos, não uma Guerra Fria.
"Penso que estamos todos de acordo quanto à necessidade de ter a URSS como um membro plenamente aceito e igualitário de qualquer associação das grandes potências formada com o propósito de prevenir a guerra internacional", FDR escreveu ao primeiro-ministro britânico Winston Churchill em setembro de 1944. "Seria possível realizá-lo ajustando nossas diferenças por meio de um compromisso entre todas as partes envolvidas", acrescentando que "isso deveria ajudar as coisas por alguns anos até que a criança aprenda a brincar".
O assessor mais próximo de Roosevelt, Harry Hopkins, disse depois da Conferência de Yalta, em fevereiro de 1945: "Os russos provaram que podiam ser razoáveis e clarividentes, e nem o presidente nem qualquer um de nós tinha a menor dúvida de que poderíamos conviver pacificamente com eles no futuro".
Filmes como Canção da Rússia e Missão em Moscou serviram à política externa de FDR. Eles deixaram a aliança soviético-americana mais palatável para os americanos, muitos dos quais detestavam o comunismo, e abriram caminho para a continuação da aliança depois da guerra.
Os censores americanos foram explícitos a esse respeito. Missão a Moscou, disse o Escritório de Informação de Guerra em um relatório, "encorajaria a fé na viabilidade da cooperação pós-guerra". Em outro relatório, o órgão saudou o filme como "uma magnífica contribuição para o programa cinematográfico do governo".
A morte de Roosevelt, em abril de 1945, foi um golpe para uma aliança de longo prazo entre os Estados Unidos e a União Soviética e "enfraqueceu, talvez fatalmente, as perspectivas de evitar ou pelo menos mitigar a Guerra Fria", escreveu Frank Costigliola no livro Roosevelt's Lost Alliances ["As alianças perdidas de Roosevelt", em tradução livre].
Harry S. Truman, sucessor de Roosevelt, não acreditava que Stalin fosse confiável. Confrontado com a expansão soviética no Leste Europeu, ele proclamou a Doutrina Truman. Os Estados Unidos, prometeu ele, "apoiariam os povos livres que resistem às tentativas de subjugação por minorias armadas ou por pressões externas".
A Guerra Fria estava a caminho. Os filmes pró-soviéticos de Hollywood foram relegados à lata de lixo da história.
Mas eles não ficaram lá por muito tempo. Em 1947, o Comitê de Atividades Antiamericanas da Câmara investigou Hollywood, com o objetivo de erradicar a "infiltração comunista". Os membros do comitê apresentaram Canção da Rússia e Missão em Moscou como prova de que Hollywood estava tomada por agentes comunistas e simpatizantes soviéticos.
O comitê convocou Ayn Rand - romancista anticomunista que fugira da URSS na década de 1920 - para testemunhar. Ela explicou como Canção da Rússia maquiava o regime de Stalin. "Não creio que fosse necessário enganar o povo americano sobre a natureza da Rússia", disse ela.
O comitê também perguntou a Jack Warner, presidente da Warner Bros., por que ele havia produzido Missão em Moscou.
"O filme foi feito quando nosso país lutava por sua sobrevivência, tendo a Rússia como um dos nossos aliados", disse Warner.
Então, com um ar de desafio, o magnata continuou: "Se fazer Missão em Moscou em 1942 era uma atividade subversiva, então os navios American Liberty, que transportaram alimentos e armas para os aliados russos, e os navios americanos que fizeram sua escolta também se envolveram em atividades subversivas". / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU