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'Misericórdia', eleito um dos melhores da França em 2024, questiona os caminhos do desejo

Dirigido e roteirizado por Alain Guiraudie, filme, em cartaz nos cinemas brasileiros, transita entre o policial e a comédia

20 jan 2025 - 20h13
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O início de Misericórdia é absolutamente banal. Ele parte do retorno de Jérémie (Félix Kysyl) para a antiga cidade em que morava, no interior da França, para cumprir com um compromisso: participar do velório do ex-chefe, dando assistência à viúva e ao filho desamparados. Essa trama, porém, é apenas a ponta do iceberg de algo muito maior e mais complicado.

'Misericórdia' reflete sobre os caminhos do desejo e da sociedade
'Misericórdia' reflete sobre os caminhos do desejo e da sociedade
Foto: Zeta Filmes/Divulgação / Estadão

O novo filme de Alain Guiraudie (Um Estranho no Lago), em cartaz nos cinemas brasileiros, passa longe de ser uma história sobre luto, retornos inesperados e reencontros. É, na verdade, uma observação bem-humorada sobre as nuances do comportamento humano, tentando compreender como o desejo pode ser uma interessante ferramenta social.

Afinal, Jérémie não está ali naquela pequena cidade apenas tentando se reconectar ou se reencontrar. Ele causa emoções mistas na viúva (Catherine Frot), que não sabe lidar com os sentimentos envolvendo o rapaz; raiva no filho (Jean-Baptiste Durand) do falecido, que também vive sentimentos conflituosos; e ainda conta com relacionamentos curiosos, e um tanto nebulosos, envolvendo um vizinho (Serge Richard) e até o abade (Jacques Develay).

É melhor não revelar muito mais do que isso para não estragar a surpresa e o impacto causado por este grande filme que foi bem recebido nos festivais de Cannes, Munique, Toronto e de Nova York e foi exibido na Mostra de São Paulo no ano passado. E mais: ele foi eleito o melhor filme de 2024 pela tradicional revista Cahiers du Cinéma, superando Segredos de um Escândalo e Zona de Interesse.

Uma trama de idas e vindas

Misericórdia é um longa-metragem complexo - tanto em forma quanto em conteúdo. Guiraudie brinca com nossos sentidos e faz com que a jornada de Jérémie seja cheia de nuances, caminhos fechados e vias de mão dupla.

Os personagens estão sempre transitando entre o desejo e o ódio, a culpa e a realização, a verdade e a mentira. Como já muito foi dito pela crítica internacional, há traços de Teorema, de Pasolini, com esse protagonista que parece ter o amor e o sexo como formas de comunicação e, mais do que isso, de persuasão. É um filme sobre desejo, seja ele de Jérémie ou projetado na figura desse rapaz que é lembrado na cidade a partir de diferentes modos e visões.

Também é importante notar como Guiraudie não se contenta com um filme apenas policialesco, como se revela pela metade. Misericórdia é uma mistura de tudo que o diretor francês nos apresentou até agora com seu cinema: o caos sombrio e sexual de Um Estranho no Lago, a comicidade de Viens je t'emmène, a bizarrice fantasiosa de Pas de repos pour les braves. Está tudo ali, em um filme em constante transformação.

O terço final de Misericórdia, por exemplo, se transforma inesperadamente em um filme de ares cômicos mórbidos, mergulhado em uma ironia mordaz, com cenas tão perturbadoras quanto divertidas. Há uma sequência envolvendo Jérémie e o abade, por exemplo, que é uma das grandes cenas do ano - estranha, desconfortável, engraçada.

Guiraudie, claro, faz um comentário social neste seu novo filme, em que retrata diferentes tipos de hipocrisias, absurdos e relacionamentos fracassados. É o homem solitário com medo de se assumir, o outro que usa a violência como substituto ao desejo e até o padre desejoso, cutucando a ferida de uma Igreja com medo de assumir as pulsões humanas de seus representantes.

Misericórdia, no final, fala sobre desejos e sentimentos conflituosos enquanto coloca o espectador contra a parede - seja na relação complicada com o protagonista de objetivos escusos, nas formas que o faz encarar o desejo, como forma de controle ou como um sentimento puro e simples que apenas surge. Um filme completo, que coloca o dedo na ferida e segue na contramão de uma Hollywood cada vez mais conservadora e assustada.

Em 'Misericórdia', a sociedade está julgando e sendo julgada
Em 'Misericórdia', a sociedade está julgando e sendo julgada
Foto: Zeta Filmes/Divulgação / Estadão
'Misericórdia' reflete sobre os caminhos do desejo e da sociedade
'Misericórdia' reflete sobre os caminhos do desejo e da sociedade
Foto: Zeta Filmes/Divulgação / Estadão
Estadão
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