'O Menino e a Garça': como é novo filme do diretor de 'A Viagem de Chihiro', que vai sair no Brasil
'Estadão' apurou que a Sato Company vai distribuir no Brasil longa de Hayao Miyazaki, do Estúdio Ghibli, antes do Oscar 2024. Filme aborda luto e dores do crescimento com uma estrutura livre
Um filme de Hayao Miyazaki, diretor de obras-primas como Meu Amigo Totoro (1988) e A Viagem de Chihiro (2001), sempre é um evento cinematográfico. Mas o primeiro longa do cineasta depois de Vidas ao Vento, de 2013, quando ele chegou a anunciar sua aposentadoria, gerou um nível extra de expectativa. Kimitachi Wa do Ikiru Ka (cuja tradução é algo na linha "como você escolheria viver sua vida?") foi lançado no Japão, em julho, sem trailer, pôster ou fotos de divulgação. Foi a maior abertura de uma produção do Estúdio Ghibli no país.
A ansiedade cresceu com a exibição do filme, rebatizado The Boy and the Heron (O Menino e a Garça), no mercado internacional, nos festivais de Toronto, San Sebastián, Nova York e Londres e, principalmente, com a estreia nos Estados Unidos, no último dia 8. A obra ficou em primeiro lugar na bilheteria - com o também japonês Godzilla Minus One em terceiro, algo raríssimo.
Começaram a sair as críticas e as premiações: melhor animação do ano para as associações de críticos de Nova York, Los Angeles, Boston, além de indicações ao Critics Choice e ao Globo de Ouro, no qual também concorre a melhor trilha, para o belíssimo trabalho de Joe Hisaishi.
Mas os brasileiros ficaram angustiados: até então, não havia distribuidor no Brasil. "Por que?", perguntavam os fãs no Twitter. Não foi por falta de interesse. O mercado cinematográfico ainda não se recuperou da pandemia, e hoje os filmes, com raras exceções, levam metade do público às salas do que antes de 2020.
Isso significa um enorme risco para as empresas, especialmente quando os direitos não estão disponíveis para todas as plataformas - cinemas, on demand, TV a cabo, streaming. Por uma série de circunstâncias, inclusive um desejo inicial de que houvesse uma única distribuidora para toda a América Latina, a vinda para o Brasil atrasou.
Mas os brasileiros podem ficar calmos, porque o Estadão apurou, com exclusividade, que a Sato Company comprou a distribuição de O Menino e a Garça para os cinemas brasileiros. A companhia sempre trouxe diversos animes para o país e é a responsável pelo lançamento aqui de Godzilla Minus One, que estreou na quinta-feira, 14, e ficou em segundo lugar na bilheteria deste fim de semana.
A Sato também abriu uma sala de cinema no bairro da Liberdade, em São Paulo. "É uma grande alegria, especialmente por ser esta obra, que é considerada, talvez, a última de Hayao Miyazaki", disse ao Estadão Nelson Sato, presidente da Sato Company, que vinha negociando os direitos há cerca de seis meses. O filme deve estrear em fevereiro ou na primeira semana de março, antes do Oscar, que acontece dia 10.
O que esperar
O Menino e a Garça contém elementos explorados pelo diretor de 82 anos em seus trabalhos anteriores, como o luto e as dores do crescimento. Mas o tom é diferente: mais sombrio, adulto, ao mesmo tempo com uma estrutura mais livre que há de encantar as crianças.
Miyazaki sempre usou certos elementos autobiográficos em seus longas, mas nunca de maneira tão evidente como aqui. Segundo Toshio Suzuki, cofundador do Ghibli, em entrevista ao site Deadline, o cineasta nunca havia feito um filme em que ele próprio é o protagonista. Era algo que ele desejava fazer em vida. Por isso, o personagem principal é um menino de 12 anos, Mahito.
Na primeira cena, ele corre desesperadamente em direção ao hospital onde sua mãe está internada, em chamas depois de um bombardeio na Segunda Guerra Mundial. É uma sequência diferente de tudo o que o Estúdio Ghibli já produziu, simbolizando ao mesmo tempo o horror da guerra e a impotência de uma criança frente à morte da mãe.
Como Mahito, o pequeno Hayao, nascido em 1941, cresceu com as imagens da guerra gravadas em sua memória. Durante o conflito, a família deixou Tóquio e foi morar em uma pequena cidade. Seu pai também fabricava partes de aviões usados em combate. Sua mãe, fonte de inspiração para suas heroínas, passou longos períodos internada por causa da tuberculose, longe do filho.
No filme, a perda de Mahito é definitiva. Seu pai logo se casa com a irmã mais nova da mulher, para confusão do menino, que se recusa a aceitar tanto o luto quanto a madrasta. Ele é educado, mas não se mostra muito disposto a se adaptar à sua nova vida. O garoto é muito menos fofo do que costuma ser um protagonista de Miyazaki.
Por isso, quando a Garça do título aparece, dizendo-lhe que sua mãe ainda está viva, Mahito embarca sem hesitar em uma jornada vertiginosa por um território situado entre vida e morte, entre sonho e realidade, cuja porta de entrada é uma misteriosa torre construída por um tio-avô. É como se Miyazaki tivesse colocado ali seu subconsciente, em um fluxo contínuo de imagens maravilhosas e nem sempre de sentido óbvio.
A Garça se transforma em um homem vestido de pássaro, há periquitos gigantes ameaçadores, obedecendo cegamente a um periquito-rei, uma pescadora que fornece peixe a almas. Os adoráveis warawara parecem marshmellows com pernas e braços. Uma menina, estranhamente familiar, é capaz de domar o fogo.
É nesse território paralelo que Mahito vai encontrar o Tio-Avô, a figura misteriosa que construiu a torre e que enlouqueceu por ter lido demais. Segundo Suzuki, o personagem tinha uma participação mais fundamental no filme. O Tio-Avô, o mestre criativo, era baseado em Isao Takahata, também cofundador do Estúdio Ghibli e mentor de Miyazaki. Takahata morreu em 2018, no meio da produção. Incapaz de seguir trabalhando no storyboard devido a seu luto, Miyazaki centrou a trama na amizade do Menino e da Garça.
Assim, os lutos de Mahito e de Miyazaki se encontram no longa. Mahito vai precisar descobrir como viver, que tipo de pessoa quer ser, a pergunta contida no título japonês, do livro de Genzaburo Yoshino de 1937, um dos favoritos de Hayao Miyazaki e uma das inspirações literárias para o filme.
O Menino e a Garça é um testamento de Hayao Miyazaki, mesmo que acabe não sendo seu último filme - como ele já anunciou aposentadoria e voltou atrás, nunca se sabe o que virá.
Como suas outras obras, traz seu assombro diante da capacidade de maldade e violência do ser humano, traumas, dores, mas também o valor da amizade, do amor, da beleza, do cuidado, da natureza, dos sonhos. Ao mesmo tempo em que olha para seu passado, também faz uma proposição para o futuro, direcionada a cada um de nós: como viver?