'Ser comparada a meus pais não me matou', diz filha de Marcello Mastroianni e Catherine Deneuve
Inspirada pela própria vida, a atriz Chiara Mastroianni decide se transformar no próprio pai em 'Marcello Mio', do diretor Christophe Honoré, exibido em competição no Festival de Cannes
CANNES - A competição do 77º Festival de Cannes, que se encerra neste sábado, 25, teve uma boa cota de filmes com premissas originais e meio malucas. Tipos de Gentileza, Yorgos Lanthimos (Pobres Criaturas) conta três histórias. Em uma delas, um policial exige provas de Liz (Emma Stone) em seu retorno, por não acreditar que ela é a sua mulher, desaparecida semanas antes.
Em The Substance, de Coralie Fargeat, Demi Moore, uma atriz considerada velha aos 50 anos, resolve injetar uma substância que lhe permite tirar de dentro de si (literalmente) uma versão mais jovem e melhor de si mesma. Emilia Pérez, de Jacques Audiard, é um thriller musical sobre narcotráfico no México com uma mulher trans no centro.
Em Marcello Mio, de Christophe Honoré, Chiara Mastroianni é uma atriz que, cansada de ser equiparada ao pai, decide se transformar nele e assim encontrar a própria identidade. É algo saído diretamente da vida da própria Chiara, sempre comparada aos pais, Marcello Mastroianni (1924-1996) e Catherine Deneuve. Com terno, chapéu e óculos, Chiara vira Marcello. No filme, atores como Melvil Poupaud, Fabrice Luchini e a própria Deneuve interpretam versões de si mesmos.
Marcello Mio é o sétimo filme de Chiara Mastroianni com Christophe Honoré. Os dois conversaram com a imprensa, em uma mesa-redonda que contou com a participação do Estadão:
Em cada filme, um ator dá muito de sua alma. Mas nunca vi ninguém dar tanto. Como você se sentiu?
Chiara Mastroianni - Eu não percebi na hora, estava me divertindo. Foi só depois, por meio das perguntas dos jornalistas, que percebi que talvez houvesse alguma coisa. Tenho total confiança em Christophe porque trabalhamos muito juntos, então nos conhecemos bem. Eu não tinha ideia do que estava fazendo, simplesmente estava gostando de fazer. Não é todo dia que você encontra um filme em que pode ser homem, mulher, falar línguas diferentes. Era uma proposta muito rica do Christophe.
Mas não é apenas uma questão de ser mulher ou homem, mas também de ser filha do seu pai.
Chiara Mastroianni - Claro, claro, é tudo isso, mas durante toda a minha vida me disseram que eu parecia com meu pai. Então para mim o fato de tentar explorar isso um pouco mais a fundo foi muito ousado, foi intrigante.
Em princípio, a ideia pode parecer uma exploração.
Chiara Mastroianni - Sim, mas se trata do Christophe. Antes do filme, fizemos um projeto de teatro sobre a história da família dele. Interpretei a tia de Christophe. Ele confiou em mim para interpretar sua tia, então eu podia confiar nele agora, trazendo meu pai para a cena. Além disso, o filme tem muitos momentos de comédia, e achei que era uma boa maneira de falar sobre esse assunto em vez de um drama.
Você perdeu seu pai quando era relativamente jovem e deve ter sido desafiador manter uma conversa com ele durante todo esse processo psicanalítico que é o filme. Qual foi a parte mais desafiadora e qual foi a parte mais cativante?
Chiara Mastroianni - A vida tem sido mais desafiadora do que o filme para mim porque, como você disse, ele morreu quando eu era jovem. Foram todos esses anos tentando manter uma conversa com ele. De certa forma, o filme é a parte mais fácil para mim porque de repente não estou mais sozinha nessa busca. É um filme feito para o público, não é um filme feito para mim. Eu tenho meus próprios problemas para lidar na terapia e tudo mais, não preciso do cinema para fazer isso.
O Christophe captou bem o seu pai?
Chiara Mastroianni - É como se Christophe tivesse tido algum tipo de acesso estranho à minha inconsciência. Quando eu era adolescente, às vezes roubava um paletó aqui e ali, mas todos nós fizemos isso em algum momento. Para mim, essa busca por meu pai tem sido muito solitária. De repente acabo em um filme com 40 pessoas, e todos os dias podemos falar do meu pai não só como pai, mas também como ator, como figura pública. É como se finalmente se fizesse a luz. Eu sei que o filme gira em torno da figura paterna que está morta. Mas, para mim, parecia muito vivo, como nunca.
Você aprendeu alguma coisa sobre seu pai?
Chiara Mastroianni - Não, a história não é sobre meu pai. A história é mais sobre uma mulher, uma atriz, que está em busca da própria identidade. O que ela encontra não é seu pai, mas si mesma. Por isso que no final ela pode se despir e voltar a nadar no mar. E, na verdade, em francês água tem o mesmo som de mãe, caso você precise de uma camada extra... (risos)
Você realmente ouve essa frase de que deveria ser mais parecida com Marcello?
Chiara Mastroianni - Ah, já ouvi coisas muito piores que isso. Mas está tudo bem, ser comparada a eles não me matou. Meus pais não fazem política. Não são ditadores. São atores, e atores muito legais. Então estou bem. Não é nada de que me envergonhe. A família é um tema fantástico para o cinema, não importa se a sua é famosa ou não. Qual é o seu lugar na família? Como a família ou o olhar público definem para você uma identidade que não é necessariamente a sua verdadeira identidade?
Você recebe um papel até mesmo dentro de sua própria família. Se você se atrasar, será sempre o atrasado. Não é nada que você possa controlar. A única maneira de controlar é sabendo o que pensa sobre si e quanto você está em paz com sua própria identidade. Conheço muitas pessoas, inclusive eu, que às vezes parecem estar em paz consigo mesmos, mas apenas não querem incomodar os outros com seus problemas.
Você perguntou mais alguma coisa para sua mãe sobre seu pai?
Chiara Mastroianni - Acho que não. Sei que é muito decepcionante ouvir isso, mas, quando estamos no set, somos realmente atores. Como atriz, gosto de viver uma vida que não é a minha. Então, quando estou no set com minha mãe ou meus amigos, ou quem quer que seja, nos tornamos atores.
Certa vez, entrevistei Catherine Deneuve e ela disse que sentia pena de Chiara porque a filha precisava falar sobre sua mãe e seu pai o tempo todo. Christophe, você acha que, como amigo de Chiara, acaba ficando mais ofendido do que ela mesma?
Christophe Honoré - Este é o sétimo filme que Chiara e eu fazemos juntos. A segunda pergunta que sempre fazem a Chiara é: "Você prefere seu pai ou sua mãe"? Chiara sempre respondeu com muito humor, mas é uma forma tão violenta de se dirigir a ela. É uma redução dela a uma pequena parte de quem ela é. Espero que o cinema possa nos ajudar a escapar disso.
Chiara Mastroianni - Por exemplo, ontem, em um programa de televisão, me mostraram um trecho da última entrevista que meu pai deu em Cannes, antes de sua morte. E o que ele diz é maravilhoso, não se trata disso. Mas o que eu vejo cada vez que o clipe é exibido é meu pai morrendo. Eles nunca acham que talvez vê-lo nessa fase da vida, nesse estado, vá doer para mim. É estranho porque dizem ser seu pai, então sabem que é seu pai. Mas, ao mesmo tempo, pedem que você reaja como se estivéssemos falando de um objeto. E isso é violento porque pede que você reaja como filha, mas não se sinta como filha.
Você tem um ótimo timing cômico. É algo em que você trabalha?
Chiara - Para ser totalmente sincera, espero ter mais oportunidades, inclusive com Christophe. É como se eu estivesse dizendo a ele: "Espero ter mais filhos com você". Meu único medo com o filme é que Christophe diga que terminamos, que este era o último.