Wim Wenders conta como pedido sobre banheiro público no Japão virou seu novo filme, 'Perfect days'
Melhor longa do influente diretor alemão em uma década rendeu o prêmio de ator no festival de Cannes em 2023 para Kôji Yakusho
No começo, era apenas um convite aberto: será que Wim Wenders conseguiria fazer um projeto sobre um conjunto de banheiros públicos em Tóquio, projetados por alguns dos maiores arquitetos, como Tadao Ando e Shigeru Ban? O cineasta alemão, apaixonado pelo Japão, disse sim imediatamente.
Chegando lá, Wenders se empolgou: e se, em vez de fotografias, documentário, curtas ou uma instalação, como era a ideia inicial, ele fizesse uma ficção? "A maneira ideal de conservar um lugar é a ficção", disse ele em Cannes.
Perfect Days é o melhor longa-metragem ficcional do diretor, um dos mais influentes dos anos 1970 e 1980, em mais de uma década. O filme marcou a volta de Wenders à competição do Festival de Cannes - ele participou dez vezes, ganhando a Palma de Ouro em 1984 por Paris, Texas, o prêmio de direção em 1987 por Asas do Desejo e o Grande Prêmio do Júri em 1993 por Tão Longe, Tão Perto, e não concorria desde 2008.
Sua nova obra causou sensação no evento encerrado no último dia 27, saindo de lá com o prêmio de melhor atuação masculina para Kôji Yakusho, mesmo quase não tendo diálogos e celebrando as pequenas coisas da vida de um homem comum, um faxineiro.
Todo dia ele faz tudo sempre igual...
O ator, conhecido por Dança Comigo? (1996) e Babel (2006), interpreta Hirayama. Todos os dias, ele faz tudo sempre igual: acorda ao som da vizinha varrendo a rua, antes de amanhecer, escova os dentes, rega as plantas, compra um café na máquina ao lado da sua casa simples e antiga, entra no carro, coloca uma fita-cassete para ouvir e vai para o trabalho. Hirayama limpa, de forma respeitosa e meticulosa, banheiros públicos de Tóquio.
Para Wenders, o personagem simbolizava a ideia de bem comum presente na cidade, que um ano atrás começava a se abrir pós-pandemia. "As pessoas estavam de volta às ruas e, embora não fosse obrigatório, quase todas estavam de máscara", disse ele em entrevista com a participação do Estadão, em Cannes.
Wenders se lembrou de que, mais de 30 anos atrás, um amigo americano ficou surpreso com o uso de máscaras pelos japoneses, achando que temiam doenças. "Eu falei que ele estava interpretando mal os japoneses, que era para proteger os outros."
Em Berlim, onde vive, Wenders tinha ficado horrorizado com o retorno à vida social pós-pandemia. "Foi um desastre. Os parques e áreas públicas ficaram destruídos. As pessoas voltaram sem um senso de comunidade", afirmou. "E no Japão, era o oposto, o bem comum era uma forma de celebrar a cola social. Era quase utópico."
Lou Reed inspirou título
Hirayama tem uma vida simples, sem luxos e posses, e está contente assim. Não fala muito. Vive sozinho, mas não é solitário. Gosta de observar as árvores e ver os raios de luz que penetram pela copa. Tira fotografias de detalhes que deixamos passar despercebidos com uma câmera analógica. Quando manda revelar aquele rolo, compra um único outro. Gosta de ouvir fitas-cassete de Patti Smith, Nina Simone, Lou Reed - a música "Perfect Day" deu origem ao título do filme: dias perfeitos.
Quando sua irmã aparece, em um carro de luxo, o espectador vislumbra seu passado. Ela pergunta, sussurrando, se é verdade que ele limpa banheiros. Hirayama apenas sorri, como quem diz: "Sim. Tenho tudo de que preciso e sou feliz".
Kôji Yakusho aspira ser como Hirayama. "Eu gostaria de viver com pouco, como ele", disse o ator. Wim Wenders, dono de uma coleção de 20 mil discos de vinil e tintas e pincéis de pintura que dariam para abrir uma loja, também. "Eu adoraria não me distrair tanto nem de ter a sensação de estar perdendo algo", contou.
"Consigo ouvir 10% da música que eu tenho. Sinto falta de quando você comprava um álbum e o ouvia todos os dias. É a mesma coisa com a oferta que temos com Netflix, Amazon, Apple, Disney. Há coisas demais de tudo. Eu tenho coisas demais de tudo na minha vida e não tenho tempo suficiente. Hirayama é o homem que eu tenho dentro de mim que tem o suficiente de tudo e não precisa de mais. Ele nunca sente que está perdendo nada."
Como Yakusho, 67, e Wenders, 77, o público brasileiro também vai ter a chance de aprender com Hirayama e meditar sobre suas próprias vidas quando o filme chegar ao Brasil. Perfect Days foi adquirido pela MUBI, mas a data de estreia ainda não foi definida.