Karim Aïnouz sobre a pandemia: "Temos que imaginar a utopia"
Cineasta lança ‘Aeroporto Central’, conta os bastidores do documentário e fala de "esperança da espera" em meio à pandemia
O que acontece com o refugiado após a travessia? O cotidiano em um abrigo e principalmente a espera, a paciência e a incerteza sobre o futuro são temas do documentário Aeroporto Central, de Karim Aïnouz (A Vida Invisível, Madame Satã, Praia do Futuro) que estreia nesta sexta-feira, 24, nas plataformas de streaming Now, Vivo Play, Oi Play, Itunes, Google+, Filme Filme e Looke.
É no extinto Aeroporto de Tempelhof, em Berlim, símbolo do poder e prestígio nazista que desde 2015 abriga estrangeiros fugidos da guerra, que Karim passou um ano e seis meses testemunhando a vida de um asilo. A partir de dois personagens, Ibrahim e Qutaiba, um estudante sírio e um fisioterapeuta iraquiano, acompanhamos o dia a dia na vida dessas pessoas: o período de adaptação, as dificuldades do período de transição, a socialização e os cuidados dividem espaço com a saudade e incerteza sobre o próprio futuro. Sem perder a paciência. “Eu acho o que eu aprendi mais foi ser paciente”, conta o diretor.
Em entrevista ao Terra, o premiado diretor conta detalhes dos bastidores, os motivos que o levaram a escolher essa história, os aprendizados e escolhas de recortes para a trama. Em tempos de pandemia, Karim falou também sobre o que o documentário pode ensinar. “Distopia é o que a gente vivia, o que temos que imaginar daqui pra frente é utopia”, disse.
Aeroporto Central estreou mundialmente na Mostra Panorama do 68º Festival de Berlim onde conquistou o prêmio da Anistia Internacional. Depois disso, foi exibido em mais de 30 festivais internacionais incluindo CPH:DOX (Copenhague), Cinéma du Réel (Paris), Art of the Real (Nova Iorque), Sheffield Doc Film Festival (Sheffield), AFI DOCS (Washington), Festival Internacional de Documentários de Amsterdã, Festival Internacional de Cinema de Bogotá, Films From The South (Oslo) e Oslo Film Festival. O longa foi lançado na Alemanha e exibido no Brasil na 42ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo e no 20º Festival do Rio.
Atenção, este texto contém spoilers.
Terra: Como esse aeroporto chegou até você? Como você ficou sabendo da história dele?
Karim Aïnouz: Eu moro muito perto desse aeroporto e eu já tinha embarcado dele uma vez, em 2004. E é um lugar que eu frequento muito depois que ele foi desativado, porque ele virou um parque. As pistas de pouso viraram um parque público. É um lugar que sempre me fascinou muito, que sempre eu olhava aquelas pistas, quantos aviões passaram aqui e agora a gente aqui andando... Tinha algo muito surpreendente vivendo em um parque onde era um aeroporto, principalmente um aeroporto que viveu os horrores da Segunda Guerra Mundial. E em 2015, com a Guerra da Síria e com o fluxo grande de pessoas fugindo da guerra e vindo para a Europa, eu vi que os hangares tinham se tornado um abrigo para refugiados, de maneira assim muito impromptu, de uma hora para outra. De um lado que eu queria muito falar, eu fiquei muito indignado pela maneira como a chegada das pessoas que estavam fugindo da guerra estava sendo coberta pela grande mídia europeia, sendo tratado como multidões que estavam adentrando o continente, como se fossem uma ameaça para a Europa, para a União Europeia, e isso me incomodava muito. Então quando eu entendi que tinha, de fato, um abrigo sendo feito do lado da minha casa, para pessoas que estavam fugindo da guerra, eu disse, 'gente, eu preciso filmar isso daqui, independentemente de ser um documentário, de ser um filme'. É muito importante documentar, tentar olhar para essa situação de outro lugar, de outro ângulo. E começou assim, eu comecei a frequentar em dezembro de 2015. O que você no filme hoje é muito diferente do que era, na verdade. Eram tendas que eram instaladas ali, tudo feito em duas semanas, as pessoas tinham que sair para ir ao toilet em um ônibus. Então começa assim. Nesse momento, você imagina que quando esse aeroporto se tornou um abrigo para refugiados, o quanto que teve de cobertura de mídia, muitas tvs foram lá fazer matéria, e quando eu vi que eu estava me comportando quase que como uma delas, indo lá ver. E então eu percebi que aquilo merecia que eu ficasse um tempo, uma trocarcom aquelas pessoas. Eu achei que de um lado era muito importante documentar aquilo, como de outro lado, era muito importante eu aprender. A gente ficou indo lá por seis meses, principalmente eu, sem abrir câmera, só conhecendo as pessoas, tentando entender o funcionamento do abrigo. Conhecendo não só as pessoas que estavam precisando do asilo, mas as pessoas que estavam montando (o abrigo). Isso é um pouco dos bastidores. A gente só começa a filmar em julho. E filmamos por um ano, acompanhando alguns personagens, e os dois (Ibrahim e Qutaiba) ficam como protagonistas no final da montagem.
Então ao todo foi um ano e seis meses com eles?
Foi um ano e seis meses, seis meses sem filmar e um ano filmando.
Voltando um pouco para o início do documentário, tem aquela parte com a guia turística. É como se fosse uma breve ambientação. Como você acha que isso ajuda a contar a história? Como que entender o histórico do lugar faz diferença?
Eu acho que ajuda a criar uma perspectiva histórica. Mas eu acho que o que aquilo faz, antes de qualquer coisa, e que para mim talvez tenha sido uma das grandes razões que eu me atraquei com essa história, no final das contas, é que tudo pode ser tão diferente. E eu digo isso de um jeito absolutamente irônico mesmo. Você já imaginou, eu dizer assim, o Hitler deve estar se tremendo na tumba. Imagina ele construindo um prédio que é o orgulho da Germânia, que é o grande projeto dele para a Alemanha, dentro da barbaridade que foi o tempo do Terceiro Reich, e ai, de repente, esse lugar que foi construído para se consertar aviões de guerra, virar um lugar para abrigar pessoas que estão fugindo de uma guerra. Então, para mim, isso é muito importante que quando a gente ficasse vendo o filme, que a gente tivesse como espectador sempre lembrando de que aquele espaço estava imantado com energia contrária do que estava sendo vivido ali, naquele momento. O que era um lugar que foi construído para alimentar a destruição, ele estava sendo usado, de novo, de um outro jeito completamente oposto, para alimentar esperança. Então, para mim, isso era muito importante dar esse tom na largada do relato.
Então pra você essa seria a grande mensagem do filme?
Não. Acho que como toda história, tem a trama A e tem a trama B. A trama e a subtrama, acho que isso é uma subtrama. Acho que a grande trama do filme é a espera. A espera, a esperança da espera, a serenidade sobre uma espera de um futuro que você não tem nenhuma noção do que ele vai ser. Aquelas pessoas não estão ali se estapeando, nem brigando, nem atacando ninguém. Elas estão ali simplesmente esperando para ver se a vida dela vai tomar outro rumo. São pessoas que estão fugindo de uma situação gravíssima, de conflito de guerra. Então, pra mim, acho que esse é grande tema do filme. Eu acho que tem uma subtrama que é assim, olha só que ironia que é a história: esse mesmo lugar, que está abrigando as pessoas que estão esperando por um futuro melhor, é o lugar que foi feito para destruir o presente.
Você comentou que ficou com vários refugiados e esses dois personagens (Ibrahim e Qutaiba) acabaram sendo protagonistas. Como eles te tocaram diferente?
Foram os que mais quiseram contar as suas histórias. Eu acho que tinha muita gente ali que estava disposta a falar de como tinha sido a experiência delas no passado, o que elas estavam vivendo no presente, o que elas estavam esperando do futuro, eu acho que foi onde houve mais troca. O Ibrahim queria muito falar do que que era a Síria, do que era o passado, do que ele esperava do futuro, de como ele estava vivendo aquele momento. Durante um determinado momento do processo, a gente deu oito cadernos, um para cada personagem que a gente estava seguindo, para eles fazerem um diário mesmo, com a intenção de publicar esses diários. E o do Ibrahim realmente foi o mais tocante nesse sentido, não só no conteúdo, mas pela maneira como ele escrevia. E ficou muito claro que era isso. Acho que em um documentário a gente tem que contar a história de personagens que também querem contar a sua história. A maior parte das pessoas que estavam ali, muitas dessas pessoas, algumas queriam contar sua própria história, outras queriam mais, e outras não queriam de maneira nenhuma. Você imagina o que é você sair da sua cidade e passar os seus dias em um hangar de um aeroporto? Então tinha muita gente que nem queria ser filmada.
Qual que foi a sensação de estar nos hangares?
Eu nunca dormi lá, nem passei semanas a fio lá. Eu sempre tive a possibilidade de voltar para a minha casa, então é muito diferente quando você pode voltar para casa. E era muito curioso porque às vezes assim, quatro, cinco dias seguidos, e era um alívio voltar para casa. E eu conversei muito com o Ibrahim sobre isso uma vez. Eu disse assim: 'cara, acho que quando eu sair daqui, eu nunca mais quero voltar'. Porque é uma sensação... apesar de você estar ali com comida, você ter o básico ali, é uma sensação de enclausuramento que é muito sufocante, mas para mim, pessoalmente, eu nunca passei por isso porque eu nunca tive a obrigação de ficar ali. Por isso que eu achei que, por exemplo, quando eu fiquei mais tempo, quando a gente começou a filmar, que era tão importante pra mim que fosse um filme de observação. Eu aprendi muito indo ali. Eu acho o que eu aprendi mais foi ser paciente.
Teve uma cena no documentário com fogos de artifício, uma cena de comemoração. Mas que pode remeter pelo som para um momento de conflito. E logo depois o Ibrahim fala disso. Foi essa a intenção da cena? Causar esse questionamento?
Não, foi muito louco. Eu achei que era importante filmar o Natal e o Ano Novo, o que que é essas pessoas passarem por essas datas, que são datas que estamos juntos. E a gente foi filmar, chegamos lá e era 22h, e eu fui um pouco por rigor. E eu cheguei, e a pessoa que era responsável pela administração do campo, do abrigo, ele comprou um monte de fogo de artifício e tinha organizado para as pessoas. Porque muitas pessoas não tinham ficado ali. Elas tinham saído. Elas podem sair, elas foram celebrar o Ano Novo na cidade. Mas foi muito impressionante para mim, porque quem ficou, claro que existiam algumas crianças, mas a maior parte das pessoas que ficaram foram homens. E você tem que entender que eles ficaram ali com medo de serem agredidos. Porque no ano anterior, aconteceu um evento em Colônia onde uma série de imigrantes árabes foram acusados de abuso sexual, foram acusados de coisas horrorosas. Então eu fui achando que não ia ter ninguém, eu também não ia pedir para os meus personagens ficarem lá naquela noite, porque eu não tinha direito de fazer isso. E, de repente, eu estou lá, e ele (responsável pelo abrigo) fez aquilo como um ato de generosidade, para quem não queria sair poder ver os fogos, dentro do campo. E eu fiquei realmente muito incomodado quando o negócio começou a acontecer porque é aquela situação... porque, que legal que ele estava fazendo isso, ao mesmo tempo, que horror, para as pessoas que estão fugindo da guerra, ficar ouvindo esse barulho. É daquelas situações absolutamente ambíguas da vida. De um lado, talvez um dos momentos mais bonitos do filme. Porque visualmente é muito impressionante, e tem uma coisa de alegria, no final das contas, que sempre, pra mim, a maior força contra a opressão é a alegria. Mas ao mesmo tempo é muito assustador. Porque não tem como você não pensar na bomba, na artilharia, na infantaria, na aviação, e é de onde essas pessoas são. É realmente uma experiência complicada essa do Ano Novo, porque ela é superlativa nos dois sentidos.
Também no documentário, a gente consegue saber que o Ibrahim consegue sair do abrigo. Mas nós não vemos ele fora do aeroporto. Esse recorte foi intencional?
Foi. Em um determinado momento, eu fiquei pensando assim... eu vou te responder de uma maneira muito genuína. Eu não tenho certeza se eu fiz a minha melhor escolha. A minha escolha foi: eu não vou sair daqui nunca. Porque no momento que eu saísse, eu fosse pra cidade, eu fosse pra onde eles vão morar, ou eu fosse onde eles vão passar o dia, eu tinha a sensação que a gente comprometia um pouco a sensação de enclausuramento que aquele lugar emana. E a maneira que eu respondo isso é que eu tenho uma vontade muito grande de continuar esse filme. Para mim, esse filme, eu quero fazê-lo a cada cinco anos com esses personagens. Eu queria, no ano que vem, filmar de novo com Ibrahim e Qutaiba, onde eles estão. Porque eu acho que esse filme, ele é inicialmente um filme sobre a guerra, ele é um filme sobre a espera, ele é um filme sobre a paciência, mas ele também pode virar um projeto que é sobre como vivemos juntos. Porque o que a gente tem ali é onde chegamos. E eu acho que tem outra questão: como vamos viver juntos? E daqui a 10 anos: como tem sido viver juntos? Eu decidi não seguir porque talvez eu pudesse fazer isso em outro filme.
Então pensando na pandemia que a gente enfrenta hoje, você acha que pode ser o que a gente pode aprender do filme: como viver juntos?
Eu acho que o que a gente pode aprender com esse filme é como viver juntos, sendo tão diferentes, mas mais do que isso. Acho que a gente pode aprender, talvez, é que a gente não necessariamente tem controle do futuro, e que a gente tem que ter paciência. Eu acho que tem uma coisa desses personagens. Imagina? Eles não têm pra onde voltar, eles não têm nada. Eles têm ali o que está naquele cubículo. Nada mais do que aquilo. E eles têm uma paciência que é impressionante. Mesmo sem saber o que vai ser dali pra frente. Eles têm esperança que dali pra frente vai ser melhor do que foi pra trás. E eu acho que se a gente aprender isso, com esse documentário, a gente aprende uma grande lição. O que tem pra trás da pandemia realmente não estava mais fazendo sentido. Não é à toa que a gente entrou nesse lugar. E eu acho que está na hora da gente poder imaginar o que tem pela frente. Eu fico muito incomodado quando dizem distopia, distopia é o que a gente vivia. Eu acho que o que temos que imaginar daqui pra frente é utopia. Então, nesse sentido, se a gente puder aprender um pouquinho com aqueles personagens, é muito bom. É muito importante também a gente entender o lugar de privilégio que a gente tem. Porque você imagina o que era onde eles estavam, e a paciência que eles estavam. Quando me perguntam por que eu gravei o filme daquela maneira, eu digo que foi uma maneira de eu escutar o que elas estavam vivendo.