Nenhuma mulher negra dirigiu filmes brasileiros em 24 anos
Relatório aponta que o porcentual de artistas negros em cargos de liderança ficou próximo de zero entre 1995 e 2018
Um estudo de raça e gênero baseado em 240 longas-metragens nacionais com maior bilheteria de 1995 a 2010 – o top 10 de cada ano -– revela que nenhuma mulher preta ou parda atuou como diretora ou roteirista nesses filmes. Além disso, o relatório, feito por pesquisadores do Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (Gemaa), indica que elas constituíram apenas 4% dos elencos.
A média porcentual também foi baixa entre os homens negros: eles corresponderam a 13% dos personagens e só a 5% dos cargos de direção e roteiro nos 24 anos. A situação das mulheres brancas foi ligeiramente melhor: elas assumiram 21% dos postos de diretoria, 34% dos roteiros e 34% dos elencos. Já no caso dos homens brancos, o cenário se manteve generoso em todo o período: 84% diretores, 71% roteiristas e 49% dos papéis em cena.
O levantamento revela ainda que o número de afrodescendentes nos cargos não foi maior ou igual ao de brancos em nenhum dos anos. Pelo contrário, as porcentagens sempre foram quase as mesmas: homens brancos ocupando os 75% dos postos de liderança, enquanto negros e negras com porcentuais próximos do zero.
O único grupo que atingiu uma inclusão, ainda que parcial, foi o de mulheres brancas, quando se igualou ao número de homens brancos nos cargos de personagem, em 2018. Embora seja uma conquista feminina, a hegemonia branca não reflete a realidade do Brasil, onde 56,1% (108,9 milhões de habitantes) da população é negra, mas continua quase nula nos filmes. "Se os negros são a maioria da população, não existe justificativa para que o audiovisual incentivado por recursos públicos não seja representativo no País", afirma Marcia Rangel, coordenadora do estudo.
Confira os gráficos:
Barraqueiros, sensuais e criminosos
A diretora regional da Associação de Produtoras Independentes (API) do Audiovisual, Cíntia Bittar, diz que esse cenário empobrece a cultura brasileira. "Isso cria uma percepção deturpada do que é o nosso País. É importante que narrativas sejam criadas a partir da diversidade de olhares e experiências."
O Porta dos Fundos criticou essa realidade com o vídeo Cotas, no qual as atrizes Noemia Oliveira e Nathalia Cruz ficam surpresas ao atuarem juntas numa cena de duas amigas negras conversando num restaurante, sem qualquer envolvimento com crimes, serviço doméstico ou brigas. "Se não for cena de favela ou escravidão, não pode. Aqui no Porta mesmo, achei que era proibido até. Duas mulheres negras num dia a dia normal… se não for documentário não sei nem como é que faz. Sei nem se pode fazer", ironizam. Assista:
Em entrevista ao Estado, Nathalia diz que teve a ideia com base em suas experiências artísticas. A atriz, que hoje é roteirista do Porta, fez um teste na Globo e competiu por um papel específico para negros. Ela, então, se perguntou por que raramente aparecem oportunidades para interpretar algo do cotidiano normal, mais comum entre os brancos.
"Ao mesmo tempo que percebem que deve ter alguém [negro], é só um 'alguém' mesmo. E com muita frequência não é o de mais destaque. É sempre beirando o protagonista, uma pessoa divertidinha. A trama nunca é sobre ela. Nos sets de gravação é comum ser a única [negra]", critica.
Apesar disso, Nathalia acredita que as coisas vêm mudando aos poucos. "[Trabalhando] no micro, a gente consegue tocar no macro em algum momento para furar a bolha. Se tem pouca representatividade, como os dados mostram, é porque pessoas atuam num espaço muito fechado de elites culturais não compostas por negros", analisa. "Audiovisual é contar histórias. E pessoas brancas, de uma realidade muito parecida, vão contar histórias que atravessam o universo delas."
Futuro nebuloso
A Agência Nacional de Cinema (Ancine) diz ao Estado que está fazendo a sua parte. Em março de 2018, adotou cotas num edital de R$ 100 milhões, com 35% do valor destinado a projetos dirigidos por mulheres e 10% para os comandados por negros e indígenas.
Em novembro do mesmo ano, um edital de produção para TV, no valor de R$ 251 milhões, entregou o mesmo percentual para cada um desses grupos. Um mês depois, o programa #AudiovisualGeraFuturo financiou projetos com cotas regionais de raça e gênero, totalizando um investimento de R$ 64 milhões, do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), em 153 projetos selecionados em todo o País.
Mas as políticas de inclusão começaram a ruir de lá para cá: de abril para dezembro de 2019, o teto de financiamento de projetos culturais caiu de R$ 60 milhões para R$ 10 milhões, e uma série de exonerações, ofensas à classe artística e nomeações polêmicas começou a desenhar as idas e vindas da pasta de cultura do governo Bolsonaro.
Jé Oliveira, primeiro negro, em 63 anos, a ser premiado como melhor diretor pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA), em 2020, teme que os inúmeros desgastes do governo Bolsonaro com as produções em prol da diversidade minem futuros investimentos. Já a cineasta Vilma Melo, primeira mulher negra, em três décadas, a vencer o Prêmio Shell de teatro como melhor atriz, em 2017, acredita que a queda da atividade econômica diminuirá o ritmo das produções.
"Se a economia retrai, o número de filmes também diminui, a remuneração vai ser menor e a situação piora para quem está na ponta do mercado audiovisual, o negro", avalia. "Toda vez que nós, [artistas negros], pensamos que estamos construindo alguma coisa e indo no caminho certo, somos derrubados."
Os receios acompanham casos recentes. Em agosto de 2019, o então chefe do Ministério da Cidadania, Osmar Terra, censurou um edital da Ancine com temáticas negras e LGBTs, retomado semanas depois por ordem da Justiça Federal. Em janeiro de 2020, o orçamento da Ancine foi reduzido para R$ 320 milhões, R$ 1,68 bilhão a menos que no ano anterior.
*Estagiário sob supervisão de Charlise Morais