‘Os arrependidos’ resgata história oculta da ditadura
Documentário levou o prêmio de melhor longa-metragem no festival ‘É Tudo Verdade’
Premiado como melhor longa-metragem da competição nacional do É Tudo Verdade, o documentário “Os Arrependidos”, de Ricardo Calil e Armando Antenore, traz à tona uma história desconhecida para muitos até então. Trata-se dos chamados “ex-militantes arrependidos” de lutar contra a ditadura militar brasileira - jovens presos e torturados pelo regime que vieram a público para apoiar o governo e se retratar.
Na época, alguns deles chegaram a participar de programas de televisão para denunciar o “terrorismo” dos grupos de esquerda e relativizar a tortura e as condições a que foram submetidos no cárcere. Viraram, portanto, uma importante arma de propaganda de seus inimigos.
Para resgatar essas histórias, o filme traz entrevistas com alguns desses personagens que, durante anos, foram chamados de traidores. Mas, entre eles, é possível observar dois grupos distintos: aqueles que se arrependeram por vontade própria e, até hoje, condenam a luta armada de esquerda; e aqueles que foram forçados pelas circunstâncias a apoiar o regime e que, hoje em dia, se arrependem do que precisaram fazer.
“Li sobre o tema na revista Piauí e aquilo me chamou muita atenção, porque eu nunca tinha ouvido falar nessa história. Sentamos na frente dessas pessoas com muita curiosidade, querendo saber o que se passou, nos colocando diante delas com o desejo de ouvir. Queríamos saber o que significa viver um trauma desse tão jovem, e depois ter que levar toda a sua vida dialogando com aquilo”, conta o diretor Armando Antenore.
O diretor Ricardo Calil conta que encontrar os personagens foi uma tarefa muito difícil, porque, para muitos deles, a memória do arrependimento é devastadora. “É muito traumática a ideia de que você foi torturado para negar ideais muito profundos de si em público. Essas pessoas ficaram a vida toda marcadas por isso. Então tentamos não julgá-los, porque eram figuras que já tinham sido canceladas e invisibilizadas historicamente”, explica.
“De certo modo, eles puderam dar a versão deles. Porque o que aconteceu na época era uma versão oficial. E depois não foi dada mais a palavra a eles. Queríamos dar esse espaço para que eles contassem a história agora, sem o peso da tortura”, afirma Antenore.
É especialmente impactante a história do jovem Massafumi Yoshinaga, que ganhou notoriedade nacional na década de 70 ao se entregar ao governo e prestar depoimentos contra a militância de esquerda da qual tinha feito parte. Após o caso, ele passou a apresentar distúrbios psicológicos e, após três tentativas, se suicidou em 1976.
Em 2004, a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos reconheceu Massafumi como vítima da ditadura, já que “em alternados momentos, por razões políticas, foi perseguido, preso e vítima das mais diversas formas de pressão, que resultaram em abalo físico e mental, ocasionando o suicídio”.
O longa traz ainda depoimentos emocionantes da viúva e da filha de um desses jovens que se viu forçado a se “arrepender” em público. Após aparecer em um programa de televisão, ele se sentiu tão culpado que resolveu escrever uma carta para denunciar internacionalmente o regime, a tortura a que foi submetido e as condições humilhantes do cárcere. Na carta, que foi retirada da prisão às escondidas, ele denuncia os arrependimentos como uma farsa do governo para se promover.
Além das entrevistas e das imagens de arquivo dos programas da época, em que alguns deles participaram, voluntariamente ou não, para apoiar o governo, o documentário também traz propagandas antigas do regime veiculadas pela televisão, sempre mostrando famílias e trabalhadores felizes, pessoas cantando o hino nacional e jingles que evocavam o nacionalismo e o amor à pátria. Um mundo ideal que tentava esconder o que estava acontecendo, naquele exato momento, nos porões da ditadura.
Os diretores contam que, quando escreveram o projeto, em 2014, perceberam que havia manifestações pedindo a volta da ditadura e uma intervenção militar - o que tornava a mensagem do filme ainda mais importante. "Infelizmente o que houve de lá para cá foi uma caminhada do Brasil em direção ao passado, se reaproximando do período que a gente retrata. Infelizmente o país e o Bolsonaro deixaram o filme mais urgente do que a gente tinha imaginado a princípio", lamenta Calil.