'Os Quatro da Candelária' estreia na Netflix com abordagem humana da chacina: 'Não é true crime'
Série nacional com quatro episódios busca 'devolver sonhos' a crianças mortas em crime bárbaro.
Mais de 30 anos depois da chacina da Candelária, ocorrida no centro do Rio de Janeiro na noite de 23 de julho de 1993, um dos oito jovens mortos a tiros por dois policiais e dois ex-PMs ainda não foi identificado, e ficou registrado na história apenas como "Gambazinho", apelido que tinha nas ruas. Agora, com a sua série fictícia inspirada no crime bárbaro, Luis Lomenha quer devolver os sonhos e a dignidade a jovens e crianças que perderam a vida marginalizadas pelo sistema.
"Os Quatro da Candelária" parte dos registros reais para contar uma história imaginada. Ambientada durante as 36 horas que antecederam a chacina, a série parte dos pontos de vista de quatro personagens, Douglas (Samuel Silva), Sete (Patrick Congo), Pipoca (Wendy Queiroz) e Jesus (Andrei Marques), contando um pouco de suas realidades antes de serem assassinados.
Durante bate-papo realizado na 48ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, o criador Luis Lomenha, acompanhado do produtor Fernando Meirelles e da codiretora Márcia Faria, compartilhou os bastidores da série e salientou que não se trata de um true crime.
"Eu era adolescente na época da chacina, e tenho memórias muito fortes porque, naquela época, íamos muito para o centro da cidade. Na cabeça de uma criança, o centro do Rio é um lugar muito suntuoso, aqueles prédios imensos com aquela arquitetura barroca. Era como um território muito próximo para mim, e foi de fato algo que tocou muito", recorda-se.
A história permaneceu na cabeça do diretor. Em 2009, ele lançou o documentário "Luto Como Mãe", sobre o luto e a luta de mulheres que tiveram seus filhos assassinados por policiais militares no Rio de Janeiro. Foi a partir de então que surgiram outros projetos que eventualmente o trouxeram ao lançamento atual. "Eu já tinha a ideia de fazer uma ficção sobre a Candelária, e foi em 2018 que a ideia amadureceu e, em 2020, a gente conseguiu avançar."
De Cidade de Deus para Os Quatro da Candelária
Esse avanço veio muito com o envolvimento de Fernando Meirelles como produtor, por ser um nome conhecido e experiente no audiovisual. Mas a relação entre os dois é antiga.
"O Luis fazia parte do elenco de Cidade de Deus, e tínhamos uma relação muito intensa. Após o filme, começamos a fazer, com o apoio da Kátia Lund, reuniões com workshops de ator", contextualiza.
Foi daí que surgiu a ONG Cinema Nosso, criada por Lomenha visando ser uma escola popular para formar novos profissionais da área – e que segue dando frutos. "Quando fizemos 'Os Quatro', foi muito legal porque tínhamos na equipe várias gerações desses 20 anos do Cinema Nosso", orgulha-se Luis.
Atuando nos bastidores com apoio à estrutura da ONG, Meirelles não perdeu o contato com a organização, e acabou entrando como produtor da série justamente para compartilhar seus conhecimentos.
"Eu entrei como um 'selinho'. Como seria o primeiro projeto grande do Luis, e temos uma relação de confiança há mais tempo, a Netflix pediu para eu entrar e dar um suporte. Mas o que aconteceu foi que eu fiquei fora e não acompanhei as filmagens. Voltei no processo de montagem e fui bem 'pentelho', e minha contribuição foi nessa etapa", explica.
Fernando Meirelles
Ficção com ares de realidade
Para criar a série, Luis e sua equipe ouviram inúmeras histórias de sobreviventes e familiares da chacina, além de contarem com pessoas no time de consultores. No entanto, o objetivo não era fazer um documentário.
"Sempre fomos muito mais fiéis à ficção do que à realidade no processo de escrita, mas sempre com a ideia de primeiro devolver essas crianças à infância roubada, e depois humanizá-las. A ideia era trabalhar no olhar delas. No 'Luto Como Mãe', abordamos a dor de quem fica. Mas, quando trabalhamos em uma cosmovisão mais ancestral, quem vai também sofre."
"As próprias mães falavam que queriam muito ver os filhos. Elas falam: 'A gente só vê os corpos dos nossos filhos, eles estirados no chão quando tem matéria jornalística ou alguma coisa. A gente queria vê-los vivos'. Então, partiu um pouco disso e da proximidade que tenho com elas até hoje."
Luis Lomenha
Por isso, Luis foca que a ideia não era trazer a "visão vertical" dos policiais, mas imaginar o que estaria passando nas cabeças daquelas crianças.
"Não fazemos true crime, nossa série tem uma pegada de realismo fantástico. O objetivo é dar uma 'saculejada' na estética. Às vezes nos vemos presos a certos modelos consolidados. Não temos a expectativa de revolucionar e transformar a realidade de todas as crianças em situação de rua, mas se a gente revolucionar a estética a partir do olhar delas, já é um grande feito", opina.
"O grande objetivo é a ressignificação dessas crianças. São potências, não exploramos a carência. Temos alguns sobreviventes que são pessoas muito bem sucedidas. Se os outros 70 estivessem aqui, talvez eles também pudessem estar contribuindo para o desenvolvimento do país."
"Os Quatro da Candelária" já está disponível na Netflix.