Revolução ou ameaça artística? IA invade o cinema sem regulamentação e vira realidade polêmica
A Inteligência Artificial já é uma realidade no audiovisual. Polêmica e repleta de possibilidades, tecnologia acende temores e debates.
Recentemente, o documentário “O Que Jennifer Fez?”, mais um dos hits de true crime da Netflix, foi acusado de usar recursos de inteligência artificial para manipular imagens da personagem central da história, Jennifer Pan, de modo que ela parecesse feliz e sorridente. O caso não é isolado. A produtora indie A24 mergulhou em uma polêmica após divulgar cartazes de “Guerra Civil” feitos com IA, e o terror independente “Late Night with the Devil” também foi criticado por usar IA para criar as vinhetas de transição que compõem o filme.
A conclusão aqui, para o bem ou para o mal, é uma só: o uso da inteligência artificial no audiovisual já é uma realidade, embora as questões éticas e regulamentares sobre o tema ainda estejam longe de serem resolvidas. A greve conjunta de atores e roteiristas que tomou Hollywood de assalto no ano passado, aliás, tinha o uso de IA como um dos pontos centrais de reivindicação dos sindicatos, já que há um temor crescente de que profissionais (não apenas os destas classes) sejam substituídos pela tecnologia.
Mais presente do que nunca: você provavelmente já viu um filme com IA e não percebeu
Segundo a revista Forbes, a antiga 20th Century Fox (hoje 20th Century Studios) já havia contado com o auxílio de inteligência artificial para analisar o roteiro de “Logan” (2017), o que ajudou a equipe criativa a tomar decisões a respeito dos temas e dos arcos do filme sobre Wolverine. Ferramentas de 'deepfake', como a usada por “O Irlandês” (2019) para rejuvenescer veteranos do cinema e naquele comercial de TV com Elis Regina e Maria Rita, e a estratégia da Warner Bros. Pictures para a divulgação de “Aquaman” (2018) também envolveram IA.
E tudo isso está mais perto do espectador do que se imagina. Sabe aquele tal de “algoritmo” que te recomenda o que assistir na Netflix e que, recentemente, barrou uma possível sequência de “Coração de Cavaleiro”? Inteligência Artificial.
Para estar a par da melhor forma de aproveitar a tecnologia, as empresas precisam correr atrás de atualizações constantes. Paulo Barcellos, CEO da O2 Filmes, conta que a produtora montou um grupo de pesquisa e desenvolvimento de soluções voltadas para o uso da IA em 2022, quando Midjourney e ChatGPT chegaram ao mercado. Segundo ele, a empresa enxerga as IAs como uma forma de auxiliar o trabalho humano e potencializar os patamares que podem ser alcançados.
“Na O2, a gente encara a inteligência artificial como ferramenta”, contextualiza, em entrevista concedida ao Terra. “É como se cada um de nós ganhássemos alguns assistentes para nos ajudarem com tarefas. Cada um desses assistentes são chamados de agentes no jargão da IA. Na O2, a gente desenvolve diversos agentes para auxiliar as pessoas nas mais diferentes funções e etapas. O principal benefício que isso traz é o aumento da qualidade dos trabalhos.”
Olhando para o futuro, as possibilidades envolvendo IA são muitas, mas só o tempo dirá o quanto tudo isso vai realmente afetar o consumo e a produção de arte.
Uma aplicação que vem ganhando notoriedade é na construção de cenários virtuais, com a IA auxiliando na criação de ambientes mais realistas, reduzindo a necessidade de sets físicos e, consequentemente, o custo de uma produção. Já no campo dos reality shows, por exemplo, programas como “Amor: Verdade ou Consequência”, disponível na Netflix e produzido pela Fremantle Media, usam inteligência artificial para analisar se o que está sendo dito pelos participantes é verdade ou mentira.
“Como em toda grande revolução, vamos ter sim um impacto na cadeia produtiva e nos empregos como conhecemos hoje”, pontua Diogo Ferreira, líder de operações da agência de marketing 360DBI e professor da ESPM. “Algumas profissões podem, sim, ser extintas? Acredito. Mas novas nascem. Ou até ano passado existia a vaga de engenheiro de Prompt?”
Barcellos concorda.“Na capacidade atual, as ferramentas de IA funcionam como assistentes para as pessoas que usam. Você não substitui o profissional pelo assistente, mas esse profissional com assistentes produz mais, melhor e mais rápido do que sem assistentes.”
No Brasil, caminhamos a passos modestos, mas que certamente já impactam os produtos audiovisuais que chegam às telas, como aconteceu recentemente com “Justiça 2”, do Globoplay. “[Na O2], ainda não temos nenhuma produção no ar que fez uso de ferramentas de IA no entretenimento, mas estamos usando esses agentes de uma forma ou de outra em muitas produções no momento”, esclarece Barcellos.
“O uso de alguma ferramenta de IA é cada vez mais comum para tudo, tanto que num futuro próximo será mais fácil contar quais projetos não usam.”
Paulo Barcellos, CEO da O2 Filmes.
Por isso, muitos acreditam que é necessário olhar com cautela para a relação quase simbiótica entre humano e IA.
“A arte como conhecemos será impactada? Sim. A arte como conhecemos vai ser extinta? Não. O que eu acredito é que veremos uma otimização de processos de criação com a IA, mas ainda teremos a busca pelo que é 100% ‘humanizado’ como um mercado fora do mainstream”.
Diogo Ferreira, líder de operações e especialista em marketing digital.
Regulamentação, riscos e profissões extintas: é o fim do caminho?
No campo da produção e da crítica cinematográfica, o debate ganha um tom mais alarmante. Um comentário sobre “Late Night with the Devil” no Letterboxd, rede social “para cinéfilos” em que as pessoas marcam e avaliam os filmes já vistos, alerta para a presença de IA no filme de forma preocupada e indignada.
“Escuta, tem IA nesse filme inteiro, nos cortes e nas mensagens de ‘já voltamos’ da emissora. Por este motivo, não consigo apreciar as atuações incríveis e o final inteligente. É ofensivo o quanto a mensagem daquele esqueleto aparece repetidamente, como se os cineastas não se importassem e quisessem demonstrar que você vai aceitar IA no seu filme que se passa nos anos 70. Não deixem que este seja o início de aceitar esse tipo de porcaria no entretenimento”, escreve um usuário da plataforma, identificado como based gizmo.
Para a revista Variety, a dupla de diretores Cameron e Colin Cairnes justificou a escolha e esclareceu a proporção do uso de IA no filme, após o comentário acima iniciar uma onda de reflexões negativas sobre o filme. “Experimentamos com IA para três imagens estáticas, que posteriormente editamos e que aparecem como breves inter títulos no filme”, declararam, apontando que tudo foi feito em conjunto com o time de direção de arte.
Se parte dos fãs concorda com a crítica a “Late Night with the Devil” pelo uso de IA, outros afirmam que o melhor é analisar caso a caso. Nesta situação, trata-se de um filme independente feito com poucos recursos financeiros, e a tecnologia pode auxiliar a produção e evitar que profissionais fiquem sobrecarregados com várias funções.
“Na capacidade atual, não é possível que a inteligência artificial substitua o trabalho humano”, determina Paulo, sobre a preocupação cada vez mais pungente.
“Ela é uma excelente assistente, especialista no assunto que você quiser, mas ainda não produz nenhum conteúdo com qualidade criativa. Acho que a ideia nem é essa. Eu vejo a IA muito mais como um script doctor, dando uma ajuda na pesquisa, tirando dúvidas sobre a coerência da história, do que escrevendo uma história.”
Paulo Barcellos.
Ainda assim, cresce em Hollywood o movimento em prol de proteção aos artistas em relação às IAs. O novo contrato do WGA, sindicato dos roteiristas, determina que “material gerado por IA não pode ser usado para minar os créditos ou direitos de um roteirista”. Já o contrato do SAG, sindicato dos atores, requer consentimento e compensação para o uso de IA ao replicar a aparência ou característica dos atores.
Tudo isso casa com uma preocupação urgente no campo da regulamentação. Ainda que os novos contratos do SAG e do WGA protejam, em partes, as respectivas classes em Hollywood, é claro que isso não é tudo. No Brasil, pauta tem sido tratada como prioritária na agenda de produtores culturais, mas o debate é complexo.
“É preciso a criação de regras para regular o que é criado pela IA”, apontou no ano passado Marcos Souza, secretário de Direitos Autorais e Intelectuais do Ministério da Cultura, durante a Rio2C 2023. “O que é criado pela máquina não é considerado uma obra porque, pela lei, é preciso ter uma pessoa de carne e osso na produção.”
Mas quais os perigos de uso não-regulamentado da inteligência artificial? “Sempre que abordo os riscos de uma tecnologia tão poderosa com um público que não está tão familiarizado, eu apresento o HeyGen e mostro a facilidade que a ferramenta proporciona, através da IA, de entregar um vídeo com a sua própria imagem falando algo que você nunca disse, com os seus trejeitos e tom de voz”, alerta Ferreira.
“O HeyGen tem suas seguranças, mas a tecnologia não está concentrada só na empresa detentora do HeyGen. Agora, imagine o poder de uma ferramenta como essa com o uso da imagem de pessoas públicas, que possuem muito material para treinar essa inteligência. Qual é o tamanho do impacto disso?”, questiona.
“Como isso pode mudar o rumo de uma eleição? E isso aconteceu nas primárias americanas, usaram a inteligência artificial para replicar a voz do Biden e pedir para eleitores não irem às urnas nas primárias.”
Diogo Ferreira.
No que concerne ao uso artístico, Barcellos aponta que riscos andam de mãos dadas com possibilidades. “É bem possível que no futuro a gente acabe gerando uma cena ou outra para completar um filme, mas eu não imagino que a gente vá parar de filmar e contratar equipes. Até porque hoje já fazemos isso de comprar imagens de arquivo para completar um filme”, explica.
“Os desafios a curto prazo são entender as limitações das ferramentas e como utilizá-las da maneira que funciona para nós, mas a longo prazo, o desafio será como lidar com as questões de direito autoral, já que esses modelos são treinados em uma quantidade enorme de dados e não temos como saber como ele se inspirou para gerar o conteúdo”, finaliza.