Série de Cidade de Deus vai além do filme com mais mulheres e foco na comunidade: 'Espaço de resistência'
20 anos depois do filme, série chega à Max sob a batuta de Aly Muritiba, com pretensões de ir além do filme e ampliar debates.
A recente onda de continuações e refilmagens que têm tomado conta do cinema mundial está gerando surpreendentes bons frutos, caso dos atuais "Alien: Romulus" e "Twisters". Se não podemos vencer o apelo nostálgico esvaziado, o melhor a se fazer é tirar proveito dele com histórias que tenham algo a acrescentar. Felizmente, é isso que faz Aly Muritiba em "Cidade de Deus: A Luta Não Para".
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20 anos depois do lançamento do filme que recolocou o cinema brasileiro nos holofotes do mundo e definiu um gênero cinematográfico hoje conhecido como favela movie, a série produzida pela O2 Filmes e distribuída pela Warner Bros. Discovery, na Max e na HBO, chega como uma espécie de resposta a todos os desdobramentos gerados pelo próprio filme no que tange ao retrato da violência em comunidade e aos efeitos disso no pensamento coletivo referente às mesmas. A violência e a luta do tráfico ainda estão ali, mas a promessa da série é um olhar mais plural para a imensidão de vivências que cabem em um único lugar.
"Cidade de Deus é uma das obras mais icônicas do cinema brasileiro no mundo. É tão importante que criou um novo gênero cinematográfico, que passou a ser copiado não só no Brasil mas no mundo inteiro", relata Aly Muritiba em entrevista ao Terra. "Ser convidado para continuar essa história me lisonjeou mas também me encheu de responsabilidade e medo da comparação, que é natural e vai acontecer. Mas, principalmente, houve uma preocupação muito grande de entender qual é a coisa que eu poderia aportar mais."
Expoente do cinema brasileiro responsável por sucessos como "Para Minha Amada Morta", "Ferrugem" e "Deserto Particular", Aly dirigiu recentemente a primeira temporada de "Cangaço Novo" e já passou por festivais como Cannes, Veneza e Sundance. O baiano costuma trazer um cinema de olhar mais contemplativo, que prioriza os dilemas morais e internos dos personagens e abordá-los com delicadeza antes de rompê-los na tela. Tudo isso é o que ele utiliza para seguir em frente em "Cidade de Deus" a partir do filme de Fernando Meirelles e Katia Lund.
No primeiro episódio, que vai ao ar neste domingo (25), reencontramos personagens que ficaram marcados no imaginário popular com o filme, como Buscapé (Alexandre Rodrigues), Barbantinho (Edson Oliveira), Berenice (Roberta Rodrigues), e encontramos alguns novatos, como Jerusa (Andréia Horta). A história se desdobra a partir de duas frentes:
Uma delas é o conflito ideológico de Buscapé, o Wilson, que se tornou um expoente do fotojornalismo das páginas policiais, mas passa a ter uma crise de consciência com isso; a outra é o retorno de Bradock (Thiago Martins), que no filme foi quem matou Zé Pequeno (Leandro Firmino) ainda como um menino de 12 anos que era o líder dos Moleques da Caixa Baixa. Recém-saído da prisão, ele dará trabalho para o atual líder do tráfico, Curió (Marcos Palmeira).
"O Buscapé como narrador da história agora é um Buscapé muito mais maduro, vivido e machucado", pontua Aly, uma vez que o personagem mantém o posto de narrador que já tinha no filme. "Ele envelheceu 20 anos, assim como nós e nosso contexto político, social e econômico. Tudo isso equilibra esse episódio em um lugar muito sutil. Mas a gente não queria só fazer uma série sobre violência, que é um dos grandes problemas que assolam as comunidades. A gente queria falar sobre mais coisas."
Essas "outras coisas" vêm na expansão do papel de personagens que ficaram como coadjuvantes do filme, que agora chegam trazendo um contraponto no que diz respeito à expansão da violência. Além de Berenice, outra personagem grande que retorna é Cinthia (Sabrina Rosa), antes apenas a namorada de Mané Galinha (Seu Jorge). Agora, as duas aos poucos se estabelecem como líderes comunitárias, abrindo espaço para novos diálogos entre o filme e quem não conhece as realidades das favelas.
"Criamos esse espaço central dentro de toda comunidade, que são os centros culturais comunitários, para onde todas as vidas confluem e de onde todas as coisas saem. A criação desse centro comunitário, onde transitam três personagens que vêm do filme, Berenice, Cinthia e Barbantinho, faz com que a comunidade vire um espaço de resistência e existência. Acho que isso é uma das grandes e belas novidades da história."
Aly Muritiba.
20 anos depois do filme (e 20 anos antes do momento atual)
A história de "A Luta Não Para" é situada no tempo 20 anos após os eventos do filme, e se passa por volta de 2004, coincidentemente 20 anos antes do que vivemos hoje. Esse distanciamento, é claro, traz suas vantagens.
Uma delas é que há um ponto de vista histórico que já torna possível entender quais movimentos daquele período fazem parte da construção social deste século em termos políticos e econômicos. Isso quer dizer que a série tem um olhar privilegiado para o desenvolvimento das milícias --grupos que, na época, ainda eram chamados de mineiras, e só foram rebatizados com a CPI das milícias de 2006.
"Foi uma coisa muito natural, porque é o que acontece na vida real", prossegue Aly. "A Cidade de Deus, localizada na Zona Oeste do Rio de Janeiro, é ainda hoje uma espécie de ilha protegida das milícias. Elas surgiram na Zona Oeste do Rio, cresceram e seguem crescendo principalmente lá. Existe um mapa da violência criado pela Secretaria de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro que mostra a evolução da milícia ao longo dos anos tomando o mapa da região. Mas ela nunca conseguiu entrar na Cidade de Deus."
Então, como as milícias são inseridas na série?
"Quando voltamos nossos olhares para o começo dos anos 2000, percebemos que aquele era um momento muito agudo, em que as mineiras estavam tentando entrar na Cidade de Deus", explica Aly.
"Era um bairro muito populoso, mais de 100 mil habitantes. Portanto, há uma reserva de rmercado muito grande para a exploração do negócio da filícia, e um curral eleitoral gigante resistindo até hoje. De 2004 até hoje, 2024, a mineira, a milícia, não entrou na Cidade de Deus."
Aly Muritiba.
Por isso, a inserção da narrativa das milícias é feita sob um viés de resistência, e até expande o olhar da série para além da Cidade de Deus. Uma das novas personagens é Lígia (Eli Ferreira), uma jornalista que não medirá esforços para investigar a atuação das mineiras.
"A gente falou: 'cara, a gente quer falar de resistência, a gente tem que também falar da milícia, e a gente queria expandir o universo'. O filme fica circunscrito à comunidade, Cidade de Deus, e a gente queria falar como também os problemas que a comunidade vive têm a ver com aquilo que vem de fora da comunidade, têm a ver com descaso político, têm a ver com corrupção política, com corrupção policial, têm a ver com tráfico de drogas, onde o consumidor da droga não é o sujeito que mora na comunidade, é o sujeito que vem de fora para comprar. Então, foi muito natural para a gente falar da mineira", conclui Aly.
Já para Eli, o enfrentamento de Lígia diante das mineiras aparenta estar em algum lugar entre coragem e certa inocência. Sem uma noção do que a espera, é ela quem coloca a cara a tapa para descobrir do que se tratam essas organizações.
"Acho que tem uma vontade e necessidade, talvez até pessoal, de fazer justiça e denunciar, apontar o que está acontecendo. E também uma certa ingenuidade, porque a Lígia chega achando que vai ser um pouco mais fácil do que realmente é. Ela acha que vai chegar, conversar com morador e perguntar, mas vê no meio do caminho que não é bem assim e que ela vai precisar de ajuda, que ela buscou. Então, quando ela tem essa ajuda, tudo começa a se desdobrar."
Além da violência: um olhar com acalento para a vida nas periferias
Para o time de atores veteranos que retorna do filme, "A Luta Não Para" é a oportunidade de ir além, até mesmo com personagens que tiveram pouco destaque. Sabrina Rosa, por exemplo, viveu a namorada de Mané Galinha no longa. Agora, ela retorna com um papel ativo na comunidade e alguém absolutamente avessa ao crime.
"Primeiro é uma alegria estar num set com pessoas que eu amo, e falar dessa história de uma forma diferente", reflete Sabrina.
"Falar realmente das casas, das famílias, como é a convivência real de uma comunidade. Porque tem festa, tem afeto, tem amor, e tem mulheres que são líderes, a base desse lugar. Está sendo um plus de especial, justamente por colocar a mulher de outra forma no favela movie, que antes só falava dos homens."
Sabrina Rosa.
Se uma falta de aprofundamento dos personagens era um problema no filme, a série tem bastante espaço para isso. "É exatamente isso que a gente está fazendo agora nessa série", concorda Alexandre, o Buscapé. "Vocês vão ver uma Berenice, um Barbantinho, um Buscapé, mais maduros, mas também muito mais esmiuçados, com muito mais densidade."
"Para nós, a importância é poder agora falar desses personagens como potência da comunidade, em como eles fazem a diferença onde estão e não esperam somente uma ajuda de uma política externa. Eles mesmos, nós mesmos, nos potencializamos e nos fazemos ser potenciais para ser vistos como o exemplo."
Alexandre Rodrigues.
Com seis episódios na primeira temporada, "Cidade de Deus: A Luta Não Para" estreia neste domingo (25) às 21h, na HBO e na Max. Os episódios serão lançados semanalmente na plataforma de streaming.