Por que famílias de vítimas da Kiss rejeitam série da Netflix e apoiam a da Globo
Polêmica opõe o jornalismo humanizado de 'Boate Kiss: a Tragédia de Santa Maria' à dramatização dos fatos de 'Todo Dia a Mesma Noite'
Cerca de 40 famílias de vítimas do incêndio na boate Kiss, em Santa Maria (RS), onde morreram 242 pessoas em 27 de janeiro de 2013, sinalizam a intenção de processar a Netflix para obter alguma compensação financeira.
O grupo representado pela advogada Juliane Müller Korb – o irmão dela, Armin, conseguiu sair antes de as chamas dominarem o espaço – não aprova a série ‘Todo Dia a Mesma Noite’, lançada nos 10 anos da tragédia.
A produção é baseada no livro homônimo da jornalista Daniela Arbex. Ainda que atado aos fatos, o roteiro cria situações e diálogos.
Os descontentes enxergam sensacionalismo em algumas cenas, como a dos corpos expostos em um ginásio para o reconhecimento pelos parentes.
Há desconforto também com a centralização na história de poucas pessoas, interpretadas por atores conhecidos da TV, como Débora Lamm, Erom Cordeiro, Bianca Byington e Paulo Gorgulho.
As famílias dos mortos e as dezenas de sobreviventes não participaram do processo criativo. A direção de ‘Todo Dia a Mesma Noite’ preferiu seguir exclusivamente o que foi relatado no livro.
Séries biográficas frequentemente desagradam os retratados e seus parentes quando não há a aprovação do olhar testemunhal na ficção inspirada na realidade. É o que acontece com o lançamento da Netflix.
Ainda que feita a partir de uma obra literária bem avaliada pelas famílias, a produção sobre a catástrofe na Kiss toma liberdades que incomodam e passa a impressão de faturar em cima da desgraça.
Em 2022, a plataforma de streaming enfrentou situação semelhante com as famílias dos rapazes assassinados pelo serial killer Jeffrey Dhamer.
Protestaram por não ter sido consultadas nem recebido pagamento pela representação de seus entes na série ‘Dhamer: Um Canibal Americano’.
Já a série documental ‘Boate Kiss: a Tragédia de Santa Maria’, produzida e lançada pelo Globoplay, conta com o apoio da maioria dos envolvidos na fatalidade.
O tratamento exclusivamente jornalístico afasta o risco de imprecisão ou distorção dos fatos, como pode ocorrer com uma dramatização como ‘Todo Dia a Mesma Noite’. Algumas sequências foram reproduzidas com computação gráfica, sem encenação com atores.
O formato lembra o da série ‘Pacto Brutal: o Assassinato de Daniella Perez’, da HBO Max, fenômeno de visualizações no ano passado. Depoimentos inéditos e material de arquivo preenchem o roteiro, sem ficcionalização.
Há um elemento afetivo no produto do Globoplay: a série é conduzida e dirigida pelo premiado repórter da TV Globo Marcelo Canellas, nascido e criado em Santa Maria.
Ele é uma referência de jornalismo humanizado, com máximo respeito à dignidade dos entrevistados. Segue a regra aplicada pelo grande e saudoso documentarista Eduardo Coutinho: “Quero saber das pessoas que eu filmo, só”.
Além de ser da cidade, Canellas possui outra ligação emocional com a história: um dos réus foi seu amigo de infância. Não havia jornalista mais adequado para realizar o delicado e penoso trabalho.
Para evitar o esquecimento e servir de alerta a fim de não se repetir, uma tragédia precisa ser recontada de tempos em tempos. A da boate Kiss, a do massacre na escola de Suzano, a da chacina de jovens em Paraisópolis...
A questão como é lidar com a memória dos mortos e a dor dos vivos. Além de profissionalismo, exige-se sensibilidade e respeito da equipe, e um posicionamento honesto em relação ao interesse comercial.
O lucro com as séries é o aspecto mais controverso. Globoplay e Netflix fizeram alto investimento calculando o retorno com os acessos dos assinantes e a chegada de novos pagantes interessados em assistir às produções.
Pelo que foi apontado na imprensa, as famílias gaúchas se veem dignificadas na verdade crua mostrada em ‘Boate Kiss: a Tragédia de Santa Maria’, enquanto contestam o tratamento novelesco e o intuito por trás de ‘Todo Dia a Mesma Noite’.