“Trash - A Esperança Vem do Lixo” encena fábula urbana no Brasil
Um dos pecados capitais, tema constante na Bíblia, a cobiça agora serve de mote para o conto moral que se desenrola em “Trash – A Esperança Vem do Lixo”, coprodução Brasil-Inglaterra, dirigida por Stephen Daldry, em que as referências cristãs e católicas são inevitáveis, ainda mais sendo o próprio Livro Sagrado uma peça importante no roteiro.
O filme é uma adaptação do livro de Andy Mulligan, um inglês que usa sua experiência como voluntário e professor de inglês e teatro em países como Índia, Vietnã, Filipinas e o próprio Brasil para os seus escritos.
E se o que ele encontrou no Brasil serviu de inspiração para o fictício lixão de Behala, localizado em algum país da América Latina, como descrito no romance “Trash”, os caminhos trouxeram a história de volta para cá, quando a produtora Working Title se associou à O2 Filmes, de Fernando Meirelles, e o Rio de Janeiro virou locação e cenário oficial da trama.
O longa acompanha a aventura inesperada de três meninos por volta dos 14 anos que trabalham catando lixo e vivem na pobre comunidade ao lado do lixão. Quando Raphael (Rickson Tevez), remexendo no meio dos sacos, encontrou uma carteira cheia de dinheiro, acreditava que aquilo era um presente para ele e seu amigo Galdo (Eduardo Luis). Porém, mais do que notas, ela trazia os documentos de José Angelo (Wagner Moura), fotos dele com a filha (Maria Eduarda), uma chave e um código, que, juntos, mudam a vida dos dois, e também de Rato (Gabriel Weinstein), outro garoto a quem eles pedem ajuda para desvendar o mistério.
O problema é que o dono da carteira estava envolvido com um político poderoso e corrupto, Antônio Santos (Stepan Nercessian), que também busca o objeto e o que há dentro dele. E para isso, ele conta com o auxílio do aparato policial da cidade, liderado por Frederico (Selton Mello).
Como os meninos não querem entregar o que encontraram, só lhes resta recorrer ao pastor Julliard (Martin Sheen), à professora de inglês Olivia (Rooney Mara) e a desconhecidos pelo caminho.
Os três garotos não atores surpreendem e dão conta da responsabilidade de protagonizar uma produção repleta de estrelas nacionais e internacionais, conduzindo o filme de forma natural e carismática. Selton Mello e Wagner Moura se destacam como o vilão e o pivô da história, mesmo com pouco tempo em tela.
No entanto, é Nelson Xavier quem brilha nas duas cenas que tem à disposição. Já entre os norte-americanos, que também são coadjuvantes na trama, é perceptível certo incômodo, especialmente de Rooney Mara, menos à vontade que Martin Sheen.
Um fator que contribui para isso é o fato de eles terem apenas algumas falas em inglês, já que a língua portuguesa predomina nos diálogos. Isso também pode ser um empecilho a mais uma indicação de Stephen Daldry ao Oscar. O diretor inglês, que é figurinha carimbada na Academia –vide “Billy Elliot” (2000), “As Horas” (2002) e “O Leitor” (2008)–, mesmo sem o grande apoio da crítica, tem o seu novo trabalho correndo por fora na próxima temporada de premiações.
Neste sentido, a sua direção decepciona, primeiro por fazer o clássico retrato do Brasil sob um olhar estrangeiro um tanto maniqueísta. Uma imagem corrupta das autoridades em países de terceiro mundo está impregnada no longa, especialmente no tom carregado dado aos vilões.
Um dos poucos momentos mais críticos é quando se percebe o dedo do brasileiro Felipe Braga –“Latitudes” (2014)– no roteiro do inglês Richard Curtis –“O Diário de Bridget Jones” (2001)– bem ao final, quando se dá a entender que policiais e políticos são apenas engrenagens de todo um sistema corrupto, de que construtoras, instituições religiosas e outras organizações fazem parte.
A questão, no fundo, é o recurso aos alguns estereótipos vendidos pelo país mundo afora. A trilha sonora é sintomática nesse quesito. Além dos arranjos, às vezes, melodramáticos, outras vezes, marcados com batidas percussivas, de Antonio Pinto, compositor brasileiro com carreira em Hollywood, a seleção musical se detém no hino do funk “Rap da Felicidade”, dos MC’s Cidinho e Doca, e uma versão do clássico tropicalista “A Minha Menina”, de Os Mutantes, em um claro uso das canções mais como propaganda turística do que como instrumento narrativo.
Daldry também não consegue equilibrar o tom de fábula urbana moderna sobre os três meninos que se arriscaram “porque era o certo”, enquanto os adultos fazem tudo errado por causa da cobiça, com o realismo e o clima de thriller que tenta imprimir, evocando “Cidade de Deus” (2002) e “Cidade dos Homens” (2002-2005, a série, 2007, o filme). Mesmo assim, a coprodução, que encerrou o Festival do Rio na última terça (07), não deixa de ter potencial de agradar ao público.
(Por Nayara Reynaud, do Cineweb)
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