Estilo, humor e olhar de Gilles Lapouge são lembrados em homenagem ao jornalista em São Paulo
Morto em 2020, o correspondente do 'Estadão' foi tema de um encontro na USP, na abertura de uma exposição em parceria com o Acervo Estadão e das comemorações pelo seu centenário de nascimento
O legado jornalístico do francês Gilles Lapouge (1923-2020), seu estilo brincalhão e ferino e a visão que ele tinha de seu ofício de correspondente estrangeiro foram lembrados por pesquisadores e jornalistas nesta segunda-feira, 18, na abertura da exposição Um Barqueiro Entre a França e o Brasil, no Instituto de Estudos Avançados da USP.
O encontro, realizado dentro da programação de 2ª Semana Franco Uspiana de Cooperação Científica, reuniu Yves Teyssier d'Orfeuil, cônsul geral da França em São Paulo; Luciana Garbin, editora executiva do Estadão; e os pesquisadores Antonio Dimas (FFLCH, IEB e IEA/USP) e Eugênio Bucci (ECA e IEA/USP).
Professora da USP, Maria Midori Daecto, a mediadora, começou lembrando que conheceu os textos de Lapouge na época da escola, nos seus 13 anos, quando os alunos tinham que ler os jornais e preparar um mural com as principais notícias. Ela era responsável por selecionar, nos cadernos internacionais, o que de mais importante havia sido publicado. Gilles Lapouge, que escreveu para o Estadão entre 1951 e 2020, sempre estava no seu mural.
Segundo ela, a ideia de uma homenagem existia desde 2020, ano da morte do jornalista. Mas era o auge da pandemia, as pessoas estavam cansadas de lives e agora, no centenário de seu nascimento, o projeto foi retomado.
Cônsul geral da França em São Paulo, Yves Teyssier d'Orfeuil contou que soube que havia sido designado para servir no Brasil poucos dias antes de ouvir sobre a morte de Lapouge. "Pensei: agora que estou indo, ele desapareceu. A primeira coisa que fiz foi ir à biblioteca e ler Dicionário dos Apaixonados Pelo Brasil", lembrou.
Para ele, Lapouge foi uma espécie de tradutor, que levava notícias daqui para lá e de lá para cá. "Ele fazia a passagem entre os dois mundos", comentou. E destacou também que o jornalista foi ainda um excelente escritor - dono de "um estilo muito agradável, fascinante e brincalhão". Todos os capítulos do seu Dicionário, por exemplo, têm humor, comentou o cônsul, que visitou, em 2022, o Acervo Estadão, parceiro na exposição em cartaz até 20 de outubro. A mostra traz painéis com reproduções de matérias emblemáticas publicadas ao longo de 70 anos.
Jornalista e professor da USP, Eugênio Bucci ressaltou que o encontro foi importante para o estudo da imprensa e do jornalismo. "Gilles Lapouge foi um correspondente na contramão. Há uma sabedoria que vem, provavelmente do 'New York Times', que dizia que o correspondente deveria ser trocado a uma certa altura porque, com o tempo, ele poderia virar um local. Vale a pena marcarmos esse traço quase único de Lapouge, um correspondente tão longevo e fecundo que, desde a origem, era um local - mas um local que sabia o que importava para o Brasil".
Bucci também destacou que o jornalismo praticado pelo francês é de difícil classificação. "Qual é o jornalismo de Gilles Lapouge? Às vezes tem semelhança com o new journalism, mas só às vezes. Isso não o define. Às vezes ele é um filósofo. E ele é um grande escritor. Para mim, Gilles Lapouge é um gênero jornalístico em si mesmo. Não vamos achar semelhança com outros grandes jornalistas." Ele finalizou comentando sua vivacidade, presença de espírito e acolhimento. "Foi uma pessoa interessada no outro, que queria ouvir o outro."
Luciana Garbin, editora executiva do Estadão, contou sobre uma das várias passagens de Lapouge pelo jornal, nos primórdios da internet, quando ele foi convidado a fazer uma palestra sobre a nova vida digital. Olhando pela janela do último andar, ele falou sobre São Paulo. "Há muitas cidades lindas no mundo. Mas vamos a essas cidades, voltamos outras vezes, e sempre encontramos as mesmas coisas. Em São Paulo, não. Cada vez que venho preciso decifrá-la de novo", ela lembrou.
A editora destacou a capacidade de Lapouge se renovar, e renovar o seu olhar. "Se não tomar cuidado, o jornalista vai se endurecendo. Temos que oxigenar o nosso olhar. E ele tinha esse trunfo: conseguia oxigenar o seu olhar para vários temas. E sempre teve um um olhar muito otimista frente às transformações", contou ela - que disse ainda que as idas do jornalista à redação eram muito ricas e incluíam conversas com a velha guarda e as novas gerações.
"O Estadão faz 150 anos em janeiro de 2025. Lapouge foi correspondente por quase metade da vida do jornal", comentou. Ela explicou ainda que o Estadão costumava encomendar outros artigos além daqueles já esperados, como quando havia algum acontecimento importante. "Nós queríamos o olhar dele.". Ela finalizou dizendo: "Do mesmo jeito que ele faz esse papel de barqueiro entre a França e o Brasil, ele faz entre o jornalismo e a literatura".
Antonio Dimas, professor de Literatura Brasileira da USP, contou que muitos anos atrás, em começo de carreira e tímido, ele foi ao mítico escritório do jornalista em Paris. Passou uma manhã lá, diante de um dos "mitos" de sua vida: um homem em carne e osso no meio de sua desordem.
O professor também falou sobre o Dicionários dos Apaixonados Pelo Brasil - sobre sua versatilidade e a diversidade dos verbetes. "Até de Sorocaba, que é minha cidade natal, ele escreve", brincou. E comentou sua intuição, objetividade, humor e produtividade. "A quantidade de matérias (são mais de 11 mil) é inacreditável. Seu dia devia ter 26 horas." Sem contar sua "impressionante multiplicidade temática" e ironia. "Ferino, é. Mas não é destrutivo. Essa é a sua grande marca", disse o professor.
Dimas finalizou comentando que Lapouge foi um brasilianista antes da onda de brasilianistas que começou a frequentar o Brasil a partir dos anos 1960. "E ele estava sempre redescobrindo o Brasil, oxigenando seu olhar."
Gilles Lapouge 100 Anos - Um Barqueiro Entre a França e o Brasil
- Saguão do Instituto de Estudos Avançados da USP (Rua da Praça do Relógio, 109 - Cidade Universitária)
- 2ª a 6ª, 10h/18, entrada gratuita. Até 20/10