Opinião: Como Thanos e o Homem-Aranha salvaram a minha vida
Reli o gibi que me apresentou Thanos, e que mudou minha cabeça aos 14 anos, logo depois de assistir Vingadores - Guerra Infinita.
É do Homem-Aranha o momento mais emocional do filme Vingadores - Guerra Infinita, em que Thanos é o protagonista. Um vilão, ou talvez anti-herói, com "gravitas", essa palavra romana difícil de definir. Um alto senso de dever, de responsabilidade; a capacidade de carregar o peso das decisões dificílimas, impossíveis.
Convicção que facilmente escorrega para o fanatismo, para a loucura. Sempre foi a marca de Thanos, o "titã louco" que encontrei pela primeira vez numa história chamada Gli Osservatori di Morte. Um gibi, imagine, italiano.
Dei a sorte de ter um pai que valorizava e priorizava a vida em família, as viagens e as leituras. Donde que lá em 1980 ele levou o filho único pela primeira vez para fora do país, para a Europa. E liberava umas libras, francos, liras para eu gastar por lá com livros e gibis. Na Europa eu encontrei gibis que no Brasil não existiam. E na Europa, em 1980, já existia uma coisa que no Brasil só pintaria muitos anos depois: lojas especializadas em quadrinhos.
Eu já tinha começado a comprar umas revistas em inglês, que apareciam muito de vez em quando em uma revistaria na praça da Catedral, em Piracicaba, onde eu morava. Mas na Itália existiam proto-comic shops: lojinhas lotadas de gibis, novos e velhos. Pontos de encontro de fãs, novos e velhos.
E foi numa dessas que encontrei Thor e Vendicatori número 209, preço de capa de quatrocentas liras. Uma edição de 13 de abril de 1979, comprada em julho de 1980, versão italiana do fabuloso, lendário Marvel Two-In-One número 2, de 1977.
Nessa história escrita e desenhada pelo inigualável, doido, hippie com ataque de punk Jim Starlin, criador de Thanos, o monstro capturou os Vingadores em sua nave. Controla a Jóia da Alma. Lidera um exército de mercenários interestelares. E está na bica de apagar o Sol e exterminar a humanidade. Um épico Marvel ao melhor estilo cósmico, místico dos anos 70. Mas ele é impedido pelo... Homem-Aranha. Sério. Peter Parker.
O que faz essa história tão marcante, e tão importante pessoalmente para mim, é que Peter rejeita repetidamente a responsabilidade de enfrentar Thanos. Já conversei sobre isso com pessoas que leram anos depois, quando saiu pela Abril na revista Grande Heróis Marvel, ou na edição da Panini. Todo mundo lembra com carinho, mas só eu lembro com tanta emoção.
No começo, depois de Peter receber uma convocação telepática para entrar na luta, ele pensa consigo mesmo (naquela época as HQs tinham balões de pensamento!): "mas eu não estou à altura desse desafio. Não sou um colossso como Thor... sou só o Homem-Aranha!"
Umas páginas depois, quando se vê sozinho contra Thanos, Peter vira as costas e foge em pânico. "Isso não é para mim!"
Eu nunca tinha visto um super-herói se acovardar assim. O Aranha era o maior herói da Marvel na época! Mas me toquei, no minuto que li essa página, que é exatamente o que eu teria feito no lugar de Peter, jovem, só uns pouco anos mais velho que eu. Tá doido, peitar Thanos sozinho? Me reconheci no realismo da situação.
Mais para frente, nosso herói consegue se acalmar o suficiente para, usando a cabeça, complicar a vida de Thanos. E depois, usando a coragem mesmo, convocar o herói que vai dar cabo do vilão... e mais não conto. Não vou dizer que me reconheci nessa atitude corajosa de Peter, mas que foi inspiradora, foi.
Fazer essa viagem pra Europa, conhecer as comic shops, ler esse gibi me ajudaram a continuar lendo quadrinhos, numa idade e época em que eu me distanciava dos super-heróis da minha infância.
Pouco tempo depois, eu viria a conhecer versões mais maduras, ousadas dos heróis, recriados por gente como Frank Miller e Alan Moore. E entraria no mundo da HQ adulta, através da revista Heavy Metal. Mas se eu não tivesse visto Peter Parker titubeando frente a Thanos, talvez nem chegasse a saber da existência dessas outras histórias, desses outros universos dos quadrinhos.
E se eu tivesse parado de ler HQ aos 14 anos, jamais teria escrito sobre HQ no meu primeiro emprego, aos 23 anos, na Folha de S. Paulo. Não teria lançado a revista Herói aos 28 anos, minha primeira editora não teria existido, nem a segunda. Não teríamos publicado depois Sandman e Dragon Ball e tantas outras HQs que têm meu nome no expediente. E assim minha vida teria sido completamente diferente.
Nesse universo paralelo, será que eu teria ido assistir ao novo filme dos Vingadores? Será que teria ao lado meu filho de 14 anos, leitor de mangá, e não de Marvel nem DC, mas meu companheiro em filmes de super-heróis quase desde que nasceu?
Respostas impossíveis. Mas com certeza eu não teria me emocionado como me emocionei no filme. Baita gibizão cósmico, místico, engraçado, dramático! Não podia ser mais Marvel a camaradagem e os embates entre os personagens. Que delícia perceber as muitas homenagens secretas ao material original, daquelas que só os fãs muito fãs mesmo vão sacar. E aquele final super, mega, arrasadoramente épico ― que dizer?
Certamente eu não teria me emocionado com a valentia, as dúvidas, a cabeça-dura, as piadas nervosas, o destino de Peter Parker. Que, afinal, me estendeu a mão naquele distante 1980, e me puxou com sua teia até aqui, onde estou.
Tanto quanto qualquer outra coisa que já li, aquele encontro de Thanos com o Homem-Aranha salvou a minha vida, a vida que tenho hoje.
Grande poder têm os heróis, nos gibis, no cinema, na vida ― e que grande, enorme responsabilidade.