Análise: Ninguém foi mais eclético que Jô Soares
O apresentador estava internado no Hospital Sírio Libanês e morreu na madrugada desta sexta; a causa da morte não foi divulgada
Ninguém mais eclético que José Eugênio Soares, o Jô, nascido no Rio de Janeiro em 1938. Humorista, claro, mas também apresentador e entrevistador de talento, ator, cineasta (de um único filme), escritor, artista plástico, músico. Jô brincava nas onze - como se diz no jargão futebolístico. E, como entende de tudo, fazia de suas entrevistas diálogos com os entrevistados.
Como se fossem conversas de bar. Não chamava ninguém de senhor e provoca uma intimidade instantânea, o que pode ser intimidante para gente mais travada. Perguntava e comentava no mesmo nível dos entrevistados. A piada recorrente, é que fala mais do que eles. Maldade. Acontece que estamos acostumados com entrevistadores passivos e submissos e Jô de fato sempre teve algo a dizer sobre qualquer assunto. Sua cultura era vasta e seu interesse, universal. Deveria ser louvado por essas qualidades e não criticado.
A persona pública de Jô foi construída a partir da televisão, que é "o" veículo de comunicação no Brasil (no mundo, para falar a verdade).
Ninguém pode se considerar famoso a não ser que tenha sua imagem veiculada pela telinha. E Jô desde cedo a cultivou em programas humorísticos, nos quais contracenava com Ronald Golias e Otelo Zeloni, entre muitos outros, na inesquecível Família Trapo. Coisa dos anos 1960, mas que faz parte de qualquer antologia séria do humor à brasileira.
Ele fez vários outros humorísticos na TV Globo, como Faça Humor não Faça a Guerra, Satiricom, Viva o Gordo, Planeta dos Homens, além de participações na Praça da Alegria e no Chico Anysio Show.
Também no cinema tem passagem marcante. O primeiro filme em que aparece é Pé na Tábua (1958), de Victor Lima, com história de Chico Anysio. Participa de um clássico do humor como O Homem do Sputnik (1959), de Carlos Manga, de filmes típicos do cinema marginal como Hitler 3º Mundo (1968), de José Agripino de Paula, e A Mulher de Todos (1969), de Rogerio Sganzerla, títulos da nova onda paulistana (leia-se, da Vila Madalena), como Cidade Oculta (1986), de Chico Botelho, e até num dos melhores trabalhos do diretor Ugo Giorgetti, Sábado (1995). Neste, Jô faz o hilário habitante da casa de máquinas do elevador em um prédio decadente do centro de São Paulo.
Jô aventurou-se uma única vez na direção de cinema, com O Pai do Povo (1976), uma ficção científica satírica. Uma guerra nuclear devasta o planeta deixando estéreis os homens sobreviventes. Com exceção de apenas um deles, que, na hora das explosões, dormia num cano de chumbo e assim escapou à radiação. Ele se torna a única esperança de sobrevivência da espécie. Além de humorístico, o filme é crítico em relação à ditadura brasileira. Para driblar a censura, Jô a situava num país imaginário, a ilha de Silvéstria. Além de atuar e dirigir, Jô Soares também escreveu o roteiro de O Pai do Povo, em parceria com Alfredo Zema e Carlos Ebert.
Outras produções do artista chegaram à tela como seu romance O Xangô de Baker Street, paródia do personagem criado por Conan Doyle ambientada no Rio de Janeiro do século 19. O filme foi dirigido por Miguel Faria Jr. e conta com elenco internacional, os portugueses Maria de Medeiros e Joaquim de Almeida.
Jô Soares escreveu vários outros livros - O Astronauta Sem Regime (1985), Humor nos Tempos do Collor (1992), A Copa que Ninguém Viu e a que Não Queremos Lembrar (1994), O Homem que Matou Getúlio Vargas (1998), Assassinatos na Academia Brasileira de Letras (2005) e As Esganadas (2011). O registro geral é cômico, às vezes paródico, e revela talento no manejo do texto. Não era um escritor ocasional, um diletante de domingo, mas praticante constante e profissional. Algo nesses textos lembra os de Woody Allen, que embora tenha se focado mais no cinema, é dono de um ecletismo similar ao de seu colega brasileiro.
Talvez a multiplicidade de talentos tenha no fundo contribuído para obscurecer o quanto Jô Soares era bom em cada uma de suas atividades.
Quem faz muita coisa paga esse preço. Ainda mais quando este alguém se torna uma figura pública, reconhecível em qualquer lugar do país em especial por uma dessas atividades, o humorismo. O Jô, o Gordo que aparecia na TV, tirava partido da obesidade e a fazia trabalhar em seu proveito. Mesmo quando por motivos de saúde precisou emagrecer, Jô continuava sendo o Gordo. Era assim que se referia a si mesmo, no melhor estilo autodepreciativo da stand-up comedy, gênero que também praticava como poucos.
Esse cérebro inquieto, o dom da graça e da ironia, a facilidade com idiomas, o domínio da escrita e o gênio de sacar o lado engraçado das coisas o tornaram um tipo inesquecível do imaginário brasileiro. Tanta inteligência, distribuída por tantos campos de atuação, o mantiveram à tona mesmo quando os tempos foram mudando. Jô fez sucesso durante mais de meio século, o que é reservado a poucos.