Calejado, Rafinha Bastos pede debate e defende: "nenhum assunto é proibido"
Alvo de críticas e processos, humorista lança série no canal FX e pede que polêmicas sejam debatidas para haver contraponto
Em 2011, durante o Talking Funny, um programa do canal norte-americano HBO que promoveu um debate sobre humor e a vida de comediantes, Ricky Gervais, um dos mais bem sucedidos humoristas do mundo, afirmou: “não há nenhum tema sobre o qual você não deveria fazer humor”. Na conversa, que ainda contava com nomes como Louis CK e Chris Rock, Jerry Seinfeld completou: “não é ‘deveria’, e sim ‘poderia’”. No Brasil, Rafinha Bastos partilha da opinião. “Nenhum assunto é proibido, existem maneiras de se falar. Você pode fazer piada de estupro, mas você precisa estar do lado do estuprador? Talvez não. Mas é engraçado pra c...”.
Aos 35 anos, e estreando um seriado autoral e semibiográfico no canal pago FX, Bastos começa a ficar calejado com problemas com a justiça. Nascido em Porto Alegre e radicado em São Paulo há 10 anos, enfrentou desde que ganhou notoriedade nacional todo tipo de processo. Em 2011 foi demitido da Band após fazer uma piada com a gravidez da cantora Wanessa. Antes disso, complicou-se por conta de um comentário sobre estupro feito em show. E em 2012 viu-se obrigado pela justiça a recolher das lojas seu DVD que continha uma piada sobre deficientes físicos e mentais após uma ação movida pela Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais de São Paulo (Apae).
Em uma conversa repleta de divagações filosóficas sobre humor e liberdade de expressão, Rafinha Bastos falou com exclusividade ao Terra durante 1 hora sobre o momento que os comediantes vivem no Brasil, seu novo programa e os principais planos para o futuro de sua carreira, que incluem um retorno à TV aberta e uma incursão no cinema.
A nova série
Mas a menina dos olhos (da vez) é A Vida de Rafinha Bastos, uma minissérie de oito episódios que estreou no FX no último sábado (20). O programa é uma mistura de ficção e casos reais adaptados que Rafinha vivendo ele mesmo conta aos colegas de cela. O motivo da prisão ainda é incerto.
Rafinha admite que bebeu na fonte de Seinfeld, Curb Your Enthusiasm e Louie, três exemplos de sitcoms que trazem humoristas vivendo eles mesmo na TV. Por outro lado, a série de Bastos difere em alguns pontos.
A se julgar pelo primeiro episódio, não é uma série com um punhado de pequenas situações engraçadas com claque de risadas e demais elementos que traduzem esse formato de programa. O piloto parece mais uma piada de 20 minutos cujo clímax de humor acontece apenas no final quando o capítulo indica tratar-se de uma situação baseada em fatos reais (inclusive com fotos).O plano é antigo. “Eu queria fazer uma série de ficção há muito tempo, desde a época da Band. Eu cheguei a falar com eles, mas ficção é um investimento arriscado para a TV aberta.” Além disso, a falta de tempo e o fato de estar já em dois programas da grade da emissora (CQC e A Liga) colocaram o projeto na gaveta.
Cinema
Mas Bastos, que acostumou-se a fazer humor como ele mesmo, sente falta da dramaturgia. E já planeja uma incursão no cinema. “Eu tenho muita vontade de fazer longa-metragem. Mas algumas coisas complicam, como o fato de quase todo longa passar pela Globo Filmes. E cá entre nós eu não sou um global. Não me parece que a Globo vai me ligar a qualquer momento me oferecendo um programa jovem.”
Rafinha Bastos, o polêmico
Ele colhe frutos de uma fama de humorista polêmico e sem limites que vez ou outra diz ter sido criada pela mídia, mas que ele próprio ajuda a perpetuar. “Eu estou cagando tudo dando essa entrevista. Eu poderia ficar quieto, e deixar isso passar. Você ia pular para a próxima pergunta.”
Mesmo assim, Rafinha não se sente mais policiado que outros humoristas. “A impressão é que as pessoas têm é que eu vou sair falando mal de todo mundo. Talvez por algumas posições que eu assumi como não pedir desculpas por uma piada que eu não ache que precisasse me desculpar criou esse estigma”.
"Não posso me vitimizar”
Em uma discussão mais ampla, Bastos acredita que grande parte dos entreveros que enfrentou sejam originados em uma questão maior: a descontextualização de algumas piadas. Ele afirma que seus principais problemas não foram gerados por uma piada envolvendo uma pessoa específica (leia-se a cantora Wanessa) e sequer ditas na TV aberta.
“A piada do estupro eu falei no palco para 120 pessoas em um ambiente controlado, desconstruído, o palco tem uma característica da desconstrução, onde nem todos os assuntos que você leva para lá representam a sua opinião”.
Para ele, o bombardeio de informações vindo de TV, rádio, jornais, internet fez com que as pessoas parassem de analisar o contexto. “A descontextualização das informações pode acontecer em qualquer lugar. Eu fazia isso na TV. A edição naturalmente descontextualiza a informação. Da mesma forma que o jornalista que for assistir ao meu espetáculo sabe que se escrever que eu falei mal disso e daquilo vai gerar mais visibilidade do que escrever que eu disse que a parada gay é um movimento digno e genuíno. Que matéria é essa? Faz parte de um sistema no qual eu me envolvi, não posso me vitimizar.”
“Não vou deixar de brincar por ser um movimento organizado”
Questionado se estaria virando um “ativista do humor”, Rafinha rechaça o título, mas vai além. “Quero ser um ativista da liberdade de expressão, mais do que isso. Do discurso. Quero que a gente debata as coisas com mais seriedade”, afirmou.
A reclamação do humorista se dá pelo fato de não ter oportunidade de conversar sobre as polêmicas que surgem de suas piadas. Em suas palavras, ele afirma parecer arrogante por ficar “cagando regra em entrevistas”. “Nunca me chamaram para debater isso. Sentar com alguém que é o outro lado e tenha uma opinião oposta da minha. Não tem um contraponto. Adoraria que me chamassem para debater. Chama o outro lado. Vamos conversar sobre isso. Tenho uma visão muito clara sobre esses assuntos”, explicou.
Sobre quem poderia estar do outro lado deste debate, Rafinha usou de exemplo o movimento feminista, que chegou a fazer protestos em frente a seu clube de comédia, na região central de São Paulo. “Achei muito legal irem para porta do meu bar lutar pelos direitos da mulheres porque descobriram um motivo. Mas vamos conversar. Deixa eu explicar pra você que você pode rir disso, que a gente pode brincar de tudo. Não tem problema. Ao mesmo tempo que existe a luta, existe a piada. Eu brinco com você como brinco com a minha mãe. Não vou deixar de brincar com você porque você é um movimento constituído, organizado e muito legal”, exemplificou.
Porta dos Fundos
Mas então por que uma piada sobre estupro gera problemas para ele enquanto o grupo humorístico Porta dos Fundos consegue falar de pedofilia de padres sem maiores questões? Para Rafinha uma série de fatores explica. “Ajuda o fato de ser um personagem, eu acho que o policiamento diminuiu e o fato de ser um grupo ajuda muito porque não é um indivíduo. Você personifica a sua raiva quando é uma pessoa falando.”
Rafinha, que chegou a publicar uma esquete onde faz piada de si mesmo ao citar o sucesso do Porta, continua: “quando é um grupo, você consegue diluir isso. Não é o Rafinha que falou. Além disso, eles fazem um trabalho legal e é o veículo correto”. Para o humorista, as piadas com assuntos delicados do Porta dos Fundos também poderiam ser alvos dessa “desconstrução” fora de contexto, mas ele aproveita a oportunidade – mais uma vez – para enfatizar: “acho realmente que é um novo momento”.
Bêbado Zé ou Marcelo, o gerente
Aprofundando no assunto das esquetes, Rafinha Bastos explica como o humorista pode se defender por trás de um personagem.“Se eu subo no palco e sou o bêbado Zé ou o Marcelo, gerente da C&A, eu sou um personagem de mim mesmo. Por isso que o Chico Anysio não se fodia tanto. Quem se fodia era o personagem. Quando dava merda, ele tirava o personagem do ar. Pronto. É mais fácil”, disse.
“Por isso quando a TV Pirata fazia uma piada talvez não gerasse merda. Mas se um cara falasse de negro como ele fazia a esquete...A esquete dilui um pouco sua informação”, concluiu.