Celebridades são escravos de seguidores e haters sentem frustração, diz psicóloga
Tatiana Paranaguá afirma que a cultura do cancelamento está baseada na inveja da maioria anônima nas redes sociais
“Não quis fama? Então agora pague o preço.” Assim pensa parcela revelante das pessoas que consomem notícias sobre famosos na internet e por meio de programas de fofocas da TV.
Basta uma gafe, um erro ou mesmo um mal-entendido para que o artista ou a subcelebridade seja julgada e condenada sumariamente.
“O que você precisa fazer é apenas ter um dia ruim e as consequências podem durar enquanto o Google existir”, resumiu o jornalista Ross Douthat, do ‘The New York Times’.
Com a espada empunhada, parte do público delira ao contribuir para a derrocada de personalidades midiáticas. O ídolo de ontem vira a ‘persona non grata’ de hoje.
Por qual razão sentimos – explicitamente ou sob disfarce – interesse e até satisfação nessa dinâmica cruel? Mestre em Psicologia, diretora do Centro Junguiano carioca, professora do Departamento de Psicologia da PUC-Rio e também professora da Casa do Saber, Tatiana Paranaguá analisa a questão.
Por que adoramos ver escândalos, crimes, separações e cancelamentos de famosos? Há sadismo e incapacidade de ser empático?
A cultura do cancelamento é um novo nome para um comportamento arquetípico milenar vestido com as roupas do século XXI. Em sua raiz estão os antigos linchamentos em praça pública de “bodes expiatórios” que assumem os erros da sombra da coletividade. Antes ainda, eram os sacrifícios para aplacar os deuses. Em versão amena é o ato de malhar um boneco no Sábado de Aleluia. Sempre que temos um grupo desequilibrado, é preciso imolar alguém para aliviar os pecados da Psique coletiva. E em uma época na qual pode-se fazer isso de forma anônima no altar das redes sociais, todos jogam a primeira pedra. Mas existem diversos ângulos pelos quais podemos examinar essa questão.
Desconstruir as celebridades a partir de suas falhas e seu sofrimento revela que são humanas como qualquer cidadão anônimo. Isso é positivo ou negativo?
A cultura do cancelamento é um resultado direto da cultura da inveja. Em quase todas as civilizações, encontramos amuletos para afastar a inveja, considerada devastadora. Hoje, no entanto, acredita-se que despertar inveja é um valor. As pessoas ficam famosas não por algum talento ou mérito, mas pelo que têm: corpo sarado, lugares que frequentam, pratos que comem, roupas que usam. Lembram um anúncio antigo, no qual uma criança segurava um brinquedo e repetia “eu tenho, você não tem”. Rapidamente entra em ação o mecanismo da inveja: a impossibilidade de ter o que outro tem ativa o desejo de que ninguém tenha. Destruir é uma forma de ter o desejo realizado. Daí o prazer de ver alguém, que antes estava acima, descer arrastado até o mundo dos reles mortais.
E o aspecto da idolatria?
Existe também uma forte projeção de divindade nos famosos. Afinal, precisa-se ter alguém para adorar. Não é a adoração a uma pessoa real, mas a projeção do que quero que ela seja para mim. Aos que recebem a projeção de deuses não é dado o benefício do erro humano, pois eles não são vistos como humanos. E, uma vez que não fazem mais jus à projeção, são apedrejados. Uma celebridade parece livre, mas é escrava de seus seguidores, de quem recebe afeto, likes, dinheiro e afirmação. Parecem deuses, mas são só objetos. Mais uma vez, o pequeno se sente grande, pois atinge uma ‘divindade’.
Hoje, o sucesso está associado à fama e ostentação, enquanto o anonimato gera descrédito e desinteresse. Como esse mecanismo afeta o indivíduo e as relações sociais?
Muita gente justifica os cancelamentos como uma maneira de fazer justiça. Mas o tribunal do Santo Ofício (o sistema punitivo da antiga Igreja Católica Romana) também era um recurso de justiça. Existem falas e comportamentos dignos de manifestações. Mas, em um tribunal sem juiz e leis, entram em ação os justiceiros, que se outorgam como régua da lei. Em pouco tempo, comentários coerentes são seguidos de xingamentos e posturas tão agressivas que, além de desproporcionais mediante o ocorrido, se tornam muito piores que o deslize do cancelado. Ou seja: é apenas um pretexto para colocar para fora o ódio e a raiva, projetar a sombra. Ódio e raiva de quê? Ora, de ser ninguém, de estar sem ferramentas para se livrar da dor do anonimato. Vistos de perto, haters são pessoas frustradas e limitadas, incapazes de produzir qualquer coisa próxima ao que querem destruir. Enfim, lhes resta invejar. Um detalhe: não podemos ser ingênuos, a ética do algoritmo valida o “falem mal, mas falem de mim”, o que faz com que muitos se tornem, de propósito, candidatos ao cancelamento para ter seus nomes no topo das buscas e comentários. Quando o coletivo apresenta um grau de inversão tão dramático, é sinal de que precisamos investir na transformação de cada indivíduo. O coletivo em última instância é feito por cada um de nós.
A respeito desse ódio gratuito manifestado por tantas pessoas anônimas – e até jornalistas conhecidos – contra celebridades em momento de fragilidade, cabe um pensamento do psiquiatra e psicoterapeuta suíço Carl Jung. “Tudo o que nos irrita nos outros pode nos levar a uma melhor compreensão de nós mesmos.”