Graziella Moretto faz espetáculo sobre o apagamento das mulheres na história
Atriz reflete em 'A Reclamação da República' a respeito da sub-representação feminina no passado e no presente
Basta circular por qualquer grande cidade para notar a quantidade de estátuas dedicadas a homens. Temos orgulho de homenagear nossos heróis. E as heroínas, onde estão?
A maioria deles foi esquecida. Não aparece nos livros de história, ainda que tenha desempenhado papel essencial na construção do Brasil. A atriz e dramaturga Graziella Moretto aborda essa questão em ‘A Reclamação da República’.
A peça está em cartaz até 3 de agosto no Teatro do MorumbiShopping, em São Paulo. Sessões às quartas e quintas, às 20h.
Sozinha em cena, ela vive uma atriz dividida entre a carreira e as múltiplas tarefas domésticas, realidade experimentada pela própria artista. Surge o questionamento a respeito do apagamento de mulheres notáveis ao longo do tempo.
Radicada em Portugal há oito anos, Graziella Moretto – vista na TV em ‘Três Irmãs’, ‘O Sistema’ e ‘Os Normais’, entre outras produções – conversou com o Sala de TV sobre a peça e o papel feminino na história e na sociedade.
Ser ‘mãe de menina’ contribuiu para despertar ou ampliar a inconformidade com o apagamento das mulheres na história oficial do Brasil?
Acho que não só em relação à história do Brasil, ser mãe de menina me despertou para outras questões que talvez eu não estivesse tão alerta, apesar de ser mulher e sentir na pele todas as injustiças e dificuldades que hoje luto para tentar diminuir, não só para as minhas filhas, mas para todas as mulheres e meninas. Certamente, quando você tem filhas, começa a perceber essas injustiças de uma forma mais animal, no sentido primitivo da proteção, daquela coisa da mãe leoa que sabe que a única coisa que ela pode fazer para proteger a cria é rugir para assustar os inimigos e os possíveis predadores. Então, claro que me motivou muito porque após ter as minhas filhas desenvolvi um tipo de compaixão também com as meninas em geral. Minhas filhas hoje têm 14 e 19 anos, a minha relação com as meninas é mais empática.
Quais mulheres a influenciaram?
Venho de um horizonte de muitas mulheres. Tenho irmãs, filhas, enteadas, a minha mãe só tinha uma irmã, então é uma coisa presente na minha vida. Essa irmandade, esse conceito de mãe coletiva, de rede de apoio, que as mulheres se promovem na vida, porque a gente não tem isso pelo Estado nem pelas nossas organizações sociais normais. A vida da mulher e da mãe é muito solitária. Eu também li um livro que chama ‘What Should We Tell Our Daughters’ (O que Devemos Dizer às Nossas Filhas, em tradução livre), de Melissa Benn. Fez muita diferença na minha vida, abriu a minha cabeça em relação às questões que eu já tinha compreensão, como a exploração, a objetificação do corpo da mulher, a cooptação do corpo da menina, da beleza juvenil, da nudez, a exploração de uma sensualidade quando nem existe tanta ainda.
As mulheres formam a maioria da população e do eleitorado, porém, estão sub-representadas em quase todas as esferas, inclusive nos Poderes. O único problema é o machismo e a misoginia ou falta mais empatia entre as mulheres?
Machismo e misoginia não são necessariamente práticas exercidas apenas pelo patriarcado, ou seja, pelos homens. Porque o próprio patriarcado é uma construção que envolve todas as esferas da sociedade. Existe porque homens e mulheres permitem, apoiam e dão suporte para esse modelo de existência social, que é onde as mulheres têm não só menos representatividade, mas são consideradas cidadãs de menor valor, menor importância. Quando a nossa opinião tem menos importância numa reunião de trabalho, em uma sala de aula, evidentemente vai ter menos valor também dentro da própria casa, numa decisão sobre o que vai ser feito com o dinheiro da família. Se uma mulher não tem poder de influência nessas questões básicas, apesar de ser a mola do mundo, porque a economia dos cuidados, o trabalho doméstico e a desvalorização desse trabalho que é invisível são o que fazem o mundo girar a favor do patriarcado e do capitalismo dominado pelos homens, então, lógico que a gente não vai estar representada nas diretorias das empresas, nos congressos, nos poderes máximos, nas casas civis, nas presidências, nos ministérios, enfim. Mas acho que, infelizmente, a melhor maneira de você esconder uma opressão é dentro da própria pessoa oprimida.
Como mudar isso?
A gente tem que ser mais empático com a ideia de igualdade de gênero, por exemplo. O feminismo é justamente um movimento para isso. Quando você encontra numa pessoa que não quer se colar num movimento porque acha que ele vem com muitas conotações, que te estereotipam como uma feminista, você percebe que o patriarcado tem tentáculos invisíveis muito poderosos e fortes. A gente precisa de homens aliados, de homens feministas, pessoas de todas as identidades e gêneros, mas principalmente a gente precisa de mulheres que não estejam tão preocupadas em perder seus privilégios por não agradar de alguma maneira o patriarcado.
Após certa idade, muitas atrizes, assim como personagens femininas históricas, são apagadas da TV e da mídia em geral. A artista que chegou aos 50, como você, enfrenta desafio extra relacionado ao etarismo?
O desafio sempre existiu. A invisibilidade das mulheres não é só no nosso meio. A gente perde valor quando perde poder de procriação. O valor da mulher está completamente associado à juventude e à possibilidade de gerar vida, então, ela deixa de despertar interesse a partir do momento em que perde esse potencial. Passa a ser negligenciada pela ciência, pela medicina, pela indústria do entretenimento. Existe um culto à juventude. É uma forma de você desvalorizar a importância da mulher, atacar a autoestima. E aí vender produtos que estimulam o rejuvenescimento. Acho que é um projeto com a invisibilidade das mulheres. É assim: se você envelhecer, vai desaparecer, então tente parecer jovem que a gente vai continuar a te dar espaço.
Já viu muitos casos assim?
O nosso meio é muito ligado à aparência, principalmente por conta da publicidade. Você fica atrelado a essa eterna juventude. A gente vê com tristeza pessoas que tiveram sucesso na juventude por conta da beleza. Depois, começam a perseguir um padrão estético que deixa a pessoa às vezes deformada. Isso impede que exista uma representação de pessoas velhas, naturais, nos meios audiovisuais. Você começa a querer manter uma certa idade, uma determinada aparência e aí acaba que não tem pessoas velhas trabalhando.
Essa realidade pode mudar?
Acho que isso tende a mudar porque temos uma geração de mulheres que foram sempre independentes, pertenceram ao mercado de trabalho, tocaram suas vidas, tiveram destaque na sociedade e contribuíram de fato em todas as áreas, inclusive na política. As mulheres de 70, 80 anos, promovem para a minha geração, de quem tem 50 anos, a certeza de que a gente realmente não conhece ainda o futuro para as mulheres maduras com o tanto de educação formal que a gente teve, com a capacidade de articulação intelectual que a gente tem, com a entrada no mercado de trabalho que a gente possui, com a sabedoria que a gente acumulou sendo aplicada para educar filhos de um jeito melhor, menos repressor, do que vinha sendo feito até as gerações anteriores. A gente está abrindo agora capítulos para pessoas que vão envelhecer muito bem. Vão tentar nos apagar mais uma vez, lógico que vão, mas vai ser difícil.
Você está quase 10 anos longe da TV. Foi uma opção artística? Voltaria a trabalhar no veículo?
Não é uma opção artística. Fiz uma escolha de vida que me afastou um pouco do mercado de trabalho no Brasil, porque eu já estou vivendo em Portugal há oito anos, isso tira você do cotidiano, da vida do país. Mas a minha relação com o Brasil sempre foi muito intensa, tirando os anos da pandemia. Desde que me mudei para cá, não tem um ano que eu não tenha ido ao Brasil fazer teatro, com o Pedro (Cardoso, seu marido) ou sem. A nossa relação com o Brasil está viva. A gente não deixou de participar artisticamente nem de dialogar, através do nosso trabalho, com a realidade do Brasil. Até porque nos interessa muito, inclusive como imigrantes, pensar o Brasil de outra perspectiva. É uma coisa que você também redescobre com essa experiência da imigração. E, às vezes, as ofertas de trabalho nem sempre compensam.
Como tem sido viver em Portugal?
Eu tenho uma realidade muito diferente aqui na Europa. Esse formato de você ter uma rede de apoio construída através dos empregados domésticos, que é uma mão de obra que está muito na corrente sanguínea da classe média alta no Brasil, não é uma realidade aqui. A minha vida depende de mim, eu tenho filhas em idade escolar, que ainda dependem de mim. Não tenho autonomia para sair a qualquer momento para trabalhar. Mas é óbvio que o audiovisual continua sendo um terreno estimulante de trabalho, tem muitas coisas que eu gostaria de fazer. Continuo escrevendo projetos, roteiros. Quem sabe uma hora terei a liberdade para me ausentar de Portugal e fazer uma produção audiovisual no Brasil.