Kate Hansen e Nicole Puzzi discutem em peça o protagonismo de mulheres mais velhas
À coluna, atrizes comentam questões relevantes sobre o feminino na maturidade lançadas em 'Mergulho no Mistério Dela', de Leilah Assumpção
Questionada sobre o impacto do envelhecimento na vida de quem vive de sua imagem, Meryl Streep, de 75 anos, foi certeira. “Eu gosto de quem eu sou agora. Outras pessoas talvez não. Sinto-me confortável. Eu me sinto livre agora. Não quero me desfazer mais de mim.”
No espetáculo ‘Mergulho no Mistério Dela’, de Leilah Assumpção, discute-se em cena os vários aspectos de envelhecer sendo mulher. Ironicamente, a longa conversa entre a ex-atriz Maiara (Nicole Puzzi) e a filósofa aposentada Cibele (Kate Hansen) ocorre enquanto aguardam o nascimento de uma menina. Mais uma mulher no mundo. A renovação do feminino.
Após temporada bem-sucedida em 2024, a peça agora ocupa o mágico espaço do Teatro Oficina, na região central de São Paulo. Um lugar transgressor, assim como as próprias intérpretes do texto. A direção é de Marcelo Drummond, que dá sequência ao legado de Zé Celso Martinez Corrêa naquele palco histórico.
As atrizes conversaram com a coluna.
Apesar da ampla discussão sobre o etarismo, as atrizes mais velhas ainda encontram dificuldade para conseguir bons papéis. Sente essa exclusão em sua carreira?
Kate Hansen - Nunca prestei muita atenção nisso da idade. Mas eu sei dessa realidade do etarismo. Agora isso está mais explícito, assim como outros preconceitos. Hoje, há mais condições para que a voz dessas pessoas seja ouvida, inclusive porque estamos vivendo mais, ganhamos muito em longevidade. Quanto ao ofício de atriz, o teatro é generoso e permite seguir no palco, comecei aos 14 anos. Tem também a indústria da televisão, que atualmente está num processo de afastamento das atrizes veteranas, mas com justa reação. Estreei aos 16 anos diante das câmeras. Eu pude acompanhar uma geração extraordinária que, independentemente da idade, seguiu e segue trabalhando, ressalto a própria Leilah Assumpção e o Zé Celso, com quem fiz as Três Irmãs na década de 70 e, anos depois, ensaiei o Ham-Let que estreou reinaugurando o Teatro Oficina. Fiz praticamente todas as televisões, muitos filmes e sigo apostando na força da atriz em todas as linguagens. Isso de escalarem um elenco olhando apenas a quantidade de seguidores ou a influência nas mídias digitais não vai longe. Vão precisar das atrizes e dos atores. Há o etarismo, mas estamos aqui e vamos sorrir fazendo o Mergulho no Mistério Dela. A encenação da dramaturgia, contracenando com o debate sobre o etarismo, nos permite perguntar, como escreve o Vinicius Tardite no programa da peça: o que é o novo e o que é o velho?
Mulheres bonitas e vistas como símbolo sexual, como você, sempre foram julgadas e criticadas na sociedade. Enxerga redução nesse preconceito?
Kate Hansen - Sempre trabalhei para ser atriz, então, se a beleza abriu caminhos, ótimo. Mas nunca me preocupei com isso ou me reduzi a isso. Procuro me cuidar para estar bem, isso é o importante. Em relação à beleza, acho que tem a ver também com uma postura. A capacidade de sentir empatia e a busca interior são elementos que me parecem importantes para a construção de um tipo de beleza da atriz. Se tentaram me reduzir à beleza, e acredito até que sim, eu não me deixei reduzir.
Sua personagem, Cibele, é uma filósofa. Sófocles escreveu: “Ninguém ama tanto a vida como o homem que está a envelhecer”. Passou a gostar mais de sua existência com o avanço da idade?
Kate Hansen - Não, sempre amei a minha existência, e nem fiquei observando isso do avançar da idade. Agora, venci um câncer e isso me deu ainda mais sentido de vida. Quando eu acordei da cirurgia - tinha medo da anestesia - fiquei profundamente eufórica com o fato de estar viva. Se antes já tinha o impulso da alegria, depois disso, ainda mais. Essa é a minha posição existencial: aproveitar o melhor da vida com alegria. Tem as perdas que a gente sofre e que são motivo de tristeza, mesmo assim, aprendemos a seguir.
Quais foram suas fontes de inspiração e pesquisa para a composição de sua personagem no espetáculo?
Kate Hansen - Me parece interessante pensar a entidade da filósofa como alguém que tem uma postura na vida de acordo com o que pensa. A filosofia como algo que está ligado a um modo vida. Nesse sentido, me inspiro muito na própria Leilah Assumpção, que desde sempre é uma mulher com um pensamento libertário, e isso está expresso não só na sua obra como na sua vida. Me inspiro nas mulheres que, como eu, foram e são capazes de levar a vida no sentido dos seus desejos. Essa é uma filosofia de vida, essa experiência e a capacidade de elaborar sobre ela me inspiraram para essa personagem.
O etarismo tem sido cada vez mais combatido, porém, as atrizes mais velhas ainda são pouco vistas nas produções de audiovisual. Sente-se excluída?
Nicole Puzzi - O etarismo atinge todas as camadas da população. A exclusão é o medo que o ser humano tem de envelhecer e morrer. Medo ilógico já que envelhecer e morrer é algo pelo qual todos iremos passar, a não ser que o ciclo seja interrompido cedo demais. Quanto a mim, isso não me preocupa. Eu luto e sempre lutei contra todo tipo de exclusão e preconceito. Quando vejo alguém da minha idade ou mais velho trabalhando, fico muito feliz. A sociedade é composta por todas as idades e isso deveria refletir nas telas. Se não é, alguém está falhando e agindo por medo ou preconceito. Fui chamada para Mergulho No Mistério Dela exatamente por causa da minha idade. Eu li e gostei de tudo, de trabalhar numa obra da maior dramaturga viva do Brasil. Além de feminista, uma senhora inteligentíssima, e de atuar ao lado da Kate Hansen, e ser dirigida por um cara admirável, Marcelo Drummond. Esse pessoal que está comigo não é etarista. Óbvio que o etarismo irá persistir, não só no meio artístico, mas em todas as empresas, grupos e cantos do país.
Sua personagem, Maiara, é uma ex-atriz. Já pensou em abandonar a carreira devido à escassez de trabalhos ou à falta de protagonismo às artistas acima de 50 anos?
Nicole Puzzi - Não. Sou uma atriz e sempre vou ser. Trabalhei muito durante toda a minha vida. Estou aposentada e feliz. Gosto de sossego, mas, nunca estou parada, sou uma pessoa útil e com muita saúde. Tenho muito pelo que viver. Trago uma felicidade interna, simplesmente por estar viva, atuante, participante. Tenho feito muitos trabalhos, inclusive filmes, teatro e até TV a cabo. Percebo que, seja pela idade ou por não ter milhões de seguidores, a mídia não dá destaque. Encenei uma peça no Teatro Municipal e não foi suficiente para a mídia destacar. Fui me aperfeiçoar nas Artes Cênicas na Itália e nem uma linha foi escrita. Eu não me revolto, não. Falo o que vejo: a valorização da falta de conteúdo artístico em muitos ‘turistas’ entrando pela porta do fundo. Para a TV, posso até voltar, independentemente da idade ou de estar fora da mídia. Se acho que isso vai acontecer, sei lá. Não me importo. Estou em paz comigo. Vivi muito e só tenho a agradecer por tudo que vivi e que ainda vou viver. Estou em um momento de muita criatividade.
Como foi o processo de composição de sua personagem? Buscou inspiração em quê?
Nicole Puzzi - Aprendi que quando não temos fonte de inspiração, a gente constrói um mundo paralelo para viver as nuances da personagem, e a inspiração vem de dentro de nosso ‘Eu’ e dos 12 arquétipos Junguianos. Uns mais do que outros. Aprendi esse método em Roma.
(Nota da coluna: os 12 padrões estabelecidos sobre o ser humano pelo psiquiatra suíço Carl Jung, criador da psicologia analítica, são: o inocente, o sábio, o aventureiro, o rebelde, o mago, o herói, o amante, o comediante, o comum, o prestativo, o governante e o criador.)
Você sempre foi apontada como uma mulher bonita e um símbolo sexual. Isso atrapalhou a carreira?
Nicole Puzzi - Mulheres vem sendo submetidas, escravizadas, despersonalizadas há milênios. Isso não se muda em 1 século, como muitas de nós estamos tentando. Em meu caso, há muito larguei a opinião alheia no vácuo. Eu sou o que construí e que muito me orgulha. A mídia (de novo) é que não evolui e fica nessa tecla de símbolo disso ou daquilo. Parece que não consegue sair dos anos 1980 e enxergar a Nicole Puzzi mulher e atriz de 66 anos, que já fez teatro com Bibi Ferreira, Paulo Autran, Juca de Oliveira, entre outros personagens importantes da nossa dramaturgia.
‘Mergulho no Mistério Dela’
Classificação: 12 anos
Teatro Oficina - Rua Jaceguai 520 - Bela Vista
De 17/01 a 02/02 (Sexta e sábado às 20h, e domingo às 18h)
Ingressos: R$ 80,00 (inteira), R$ 40,00 (meia) e R$ 30,00 (moradores do Bixiga)
Mais informações: @mergulhonomisteriodela