Mídia estimula obsessão fálica vista na polêmica entre sertanejo e repórter trans
Comentário do cantor Bruno a Lisa Gomes ressalta a hipervalorização do membro sexual masculino entre héteros e gays
“A mulher não existe”, disse o psicanalista francês Jacques Lacan, discípulo de Freud. Essa frase, tirada de contexto, é usada pelo pensamento machista e misógino – consciente ou não – de que o ser feminino não tem tanta importância porque não possui um pênis.
Ao longo de séculos, o mundo patriarcal já havia se encarregado de antecipar essa visão deplorável a respeito das mulheres. A sociedade sempre se submeteu ao falo, símbolo de poder e superioridade. Fez dele um objeto de desejo supervalorizado.
Quando o sertanejo Bruno encara a repórter transexual Lisa Gomes, do ‘TV Fama’, e pergunta “você tem pau?”, ele reforça essa importância hiperbólica do pênis. Na sua frente está uma pessoa que se declara mulher, com aparência feminina, mas o sertanejo quer saber se a jornalista tem ou não um membro igual ao dele.
Mesmo diante de uma câmera de TV e de testemunhas, o cantor se acha no direito de invadir a camada mais profunda (e potencialmente frágil) da intimidade de uma pessoa.
Um ato de desrespeito com a repórter e os transexuais em geral. Atitude com efeito autodestrutivo – como Bruno não vislumbrou o estrago de tal indiscrição na sua imagem pública? Pediu perdão, porém, o estrago é irreversível.
Há uma obsessão masculina, independentemente da orientação sexual, a respeito do pênis alheio. Não é à toa que a figura do ‘manja-rola’ é uma tradição nos banheiros públicos. A grama do vizinho é sempre mais verde – ou, neste caso, talvez maior e mais grossa.
No universo gay, ter um membro ‘XL’ ou ‘XXL’ garante o sucesso nos aplicativos de pegação. O usuário é geralmente objetificado pelos centímetros que tem a oferecer. Quanto maior, mais desejado.
Em sites sobre celebridades, fotos de homens famosos usando cueca ou sunga geram manchetes picantes e o incontrolável ‘zoom’ para conferir de perto.
A imprensa também é falocêntrica. Basta verificar a quantidade de matérias sobre o dote do cantor Léo Santana e de outros artistas vistos como volumosos.
Enquanto a vagina é alvo de piadas e comentários depreciativos no cotidiano e até em produções do audiovisual, o órgão masculino suscita exaltação e inveja. A teledramaturgia explorou o tema com diferentes abordagens.
Em ‘Tieta’, exibida na Globo em 1989, a fama de bem-dotado de Osnar (José Mayer) provocava delírios e desmaios em algumas religiosas da cidade. Na mesma novela, a viúva Perpétua (Joana Fomm) guardava numa caixa o pênis do marido morto, como se fosse uma relíquia.
Entre 2009 e 2011, a série ‘Hung’ (expressão em inglês para bem-dotado), da HBO, mostrou um homem comum com a vida fracassada. Restava a ele um consolo: seu pau grande. Os amigos o elogiavam. Ray (Thomas Jane) fez da anatomia privilegiada o ganha-pão.
“Muitas vezes, enxergamos uma pessoa apenas por seu órgão sexual, sem considerar todo o resto, inclusive a personalidade”, explica Lucas De Vito, psicólogo focado na sexualidade de homens gays e um dos apresentadores do podcast PodeGay.
“A gente aprende a reduzir alguém a um órgão, especialmente se for um pênis. A repórter ofendida pelo cantor, por exemplo, tem uma história de vida, temperamento próprio, seus gostos, e acabou reduzida a uma única característica”, diz o especialista.
“O falocentrismo é explícito. Os homens reproduzem isso para se reafirmarem. Se você tem pênis, possui poder, está no topo hierárquico da sociedade. Por isso, também se valoriza tanto o pênis grande.”
A visibilidade de transexuais famosas que se submeteram à cirurgia de redesignação sexual, como as modelos Roberta Close e Léa T, parece estimular a curiosidade invasiva, especialmente da parte de homens que se declaram heterossexuais, de saber se outras trans são ou não ‘operadas’.
“No caso de uma pessoa transexual, quando você questiona o órgão sexual dela, produz a invalidação, a trata como um objeto, não uma pessoa”, afirma De Vito.
“Essa situação constrangedora, como aconteceu com a repórter Lisa Gomes, pode gerar insegurança, medo, ansiedade, depressão e até aumentar o risco de suicídio.”
As pessoas e a mídia em geral precisam rever a maneira como hipervalorizam o pênis, estigmatizam a vagina e o tratamento a pessoas não-cisgêneras. Uma questão de bom senso e humanidade.