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Rei do fetichismo, Heitor Werneck critica o moralismo na TV: “Punem o prazer”

Criador da festa Luxúria defende o pornô soft de famosos, elogia Anitta e diz que o público prefere ver guerra do que arte

6 set 2022 - 11h00
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Estilista, figurinista, produtor cultural e ícone da atitude urbana, Heitor Werneck atuou como diretor, consultor ou produtor de arte em vários sucessos da TV do streaming, como ‘Mandrake’, ‘Psi’, ‘Bom Dia, Verônica’, ‘Guerra dos Sexos’ e ‘Vamp’. 

Seu olhar de esteta, associado ao variado conhecimento a respeito da sexualidade humana, já produziu coleções de moda, looks para cabaret, artigos para sex shop e eventos como o Projeto Luxúria, festa mensal a adeptos dos mais diversos tipos de fetiches. A próxima edição será em 8 de outubro, em São Paulo.

Heitor Werneck defende o respeito à liberdade sexual e à prática de fetiches
Heitor Werneck defende o respeito à liberdade sexual e à prática de fetiches
Foto: Divulgação

Em conversa com o blog, Werneck revela indignação com a abordagem conservadora da TV em relação às temáticas da sexualidade. Ele afirma que a culpa religiosa atrapalha a exploração do prazer corporal. Por outro lado, apoia artistas libertárias como Anitta, impiedosamente julgada por sua independência sexual. 

Como avalia esses 16 anos do Projeto Luxúria? A relação da sociedade com a temática evoluiu ou regrediu? 

A sociedade, ao mesmo tempo que aprendeu que o sexo e o fetiche fazem parte da economia, com produtos como harness, jockstraps, lingeries masculinas e femininas, chicotes, máscaras, roupas de látex, vinil ou couro, ainda é extremamente conservadora e repressora. O fetiche é usado com temática de filmes, videoclipes e está presente na moda, mas os adeptos de fetiches ainda são completamente julgados e discriminados pela sociedade heteronormativa e mesmo dentro da comunidade LGBTQIA+. Na Parada LGBT, a letra k, que é o universo kinky, que engloba o fetiche, não é representado. Todo ano, tenho que implorar para esta ala de fetiche acontecer, enquanto que no mundo afora é uma das coisas mais normais do mundo os gays andarem na rua de lingerie, jock, corselet, harness... Aqui ainda há um julgamento grande. Escuto muito crítica de que eu não deveria me expor, afinal sou produtor cultural, diretor artístico de vários eventos estaduais, municipais e privados. Na rua, sou humano, ativista social e estilista. Sinto vontade de ajudar a expor cada vez mais o fetiche e as orientações sexuais. 

Você faz TV. Acha que a televisão, especialmente os canais abertos, deveria falar mais sobre sexo na teledramaturgia e no jornalismo?     

Sim, a teledramaturgia brasileira é extremamente preconceituosa, ainda coloca travestis, gays e lésbicas como personagens hilários ou problematizados. Praticantes de fetiche são serial killers. Ignora que grandes mulheres da história, imperadores e gênios, e alguns deuses e deusas, eram adeptos confessos de fetiches. Nas mitologias grega, africana e nórdica, muitos fetiches são narrados de forma natural, não moralista. Vários deuses se vestem de mulheres e continuam a exercer sua sexualidade sem questionamentos morais. Por exemplo, Hércules servia a Rainha Ônfale vestido de mulher. Oxalufã se veste de saia por imposição de sua esposa Nanã Buruque. A imprensa nunca fala de sexo e não trata os profissionais de sexo como trabalhadores, e sim marginais. 

Por que o assunto continua a ser tabu? 

Por exemplo, temos uma varíola que não é uma IST (infecção sexualmente transmissível), mas o Ministério da Saúde e a mídia a retratam como uma doença de homens que fazem sexo com homens. Existe pouca ou nenhuma educação sexual em escolas, tanto nas periféricas como nas graduadas. Esses equívocos e omissões geram pessoas que desprezam a diversidade de orientação sexual. Elas têm profundo desconhecimento de áreas de prazer e do princípio do fetichismo.

Werneck diz que a teledramaturgia atual está presa ao moralismo de grupos religiosos
Werneck diz que a teledramaturgia atual está presa ao moralismo de grupos religiosos
Foto: Reprodução/Instagram

O brasileiro tem fama no exterior de ser extremamente liberal no sexo. Mas assistimos a um recrudescimento do conservadorismo e de ataques aos liberais e libertários. Como vê essa contradição?  

Os brasileiros, infelizmente, são retratados lá fora como copuladores. Muitos estrangeiros acreditam que andamos nus nas nuas porque vivemos em um País tropical. Vendem a imagem de corpos lindos no Rio de Janeiro, em praias do Nordeste ou do litoral paulista. Temos nossos indígenas com corpos pintados e adornos. Para os habitantes de Países frios, é uma delícia de ver tal liberdade e esse contato com a natureza. O moralismo está ligado à religião e ao grande número de igrejas e cultos que pedem uma vestimenta e um decoro. A nossa sociedade fica cada vez mais presa em valores morais deturpados de textos religiosos interpretados por líderes que, às vezes, são os primeiros a quebrar as regras. O sexo sempre foi condenado e malvisto. Isto é a prova maior do grande retrocesso cultural e educacional deste País. 

O pornô soft está na moda, com muitos famosos se despindo em plataformas de conteúdo adulto por dinheiro. Como avalia esse fenômeno?   

Isto é um grande ato político de respeito ao corpo e de descoberta de novos talentos. A sexualidade e a curiosidade sempre foram uma constante na vida e psique humana. Você querer saber como seu vizinho ou ídolo se comporta sexualmente é algo normal. Nós, os humanos, adoramos nos expor, inclusive criamos lugares para isto, desde coliseus e teatros até a televisão. Todos somos consumidores de arte. O comércio erótico desvinculado de prostituição se tornou uma verdade que ainda é um tabu, pois a própria imprensa retrata o nu feito por artistas como vergonhoso ou julga quando alguém está em site de conteúdo erótico. Na década de 1970, vivemos a era da pornochanchada, com glamour nos cinemas e na TV. Temos grandes atrizes e atores saídos daquele nicho. Para algumas atrizes, ser capa da revista ‘Playboy’ era um sonho e a realização financeira. A arte erótica e a pornografia sempre fizeram parte de nossa realidade. 

Artistas que representam a liberdade sexual, como Anitta, são sob constante ataque ideológico. Considera importante a postura deles?    

A Anitta é uma grande representante da realidade atual e faz isto com desenvoltura e inteligência. Ela é uma mulher que defende todos os corpos e a sexualidade livre. Um referencial de empoderamento. O momento pede que mais mulheres e LGBTs, como Ru Paul e Gloria Groove, ocupem espaços, com atitudes políticas e humanitárias. No exterior, temos grandes nomes defendendo a política de saúde relacionada ao HIV e situações de vulnerabilidade. Não vejo os artistas brasileiros e LGBTs fazerem o mesmo. O meu Projeto Luxúria sempre arrecada bens e comidas para vulneráveis LGBTs. Sinto falta de artistas envolvidos nessa causa. Anitta defende muito a periferia e levou o corpo periférico para o mundo.  Eu queria ver mais posicionamentos como o dela. Não curto sua música, mas admiro a artista por seu posicionamento social. 

Se nos anos 1980 e 1990 havia muita nudez nas novelas, hoje o pudor permanece. Até os banhos de rio de ‘Pantanal’ são gravados de maneira discreta. O que acha disso?   

Nossa mídia e os patrocinadores fazem parte de corporações religiosas repressoras que interpretam textos sacros de forma punitiva. Transforam o corpo e o desejo em pecado. Vivemos uma distopia em que os valores são ditados por grupos de moralistas. As igrejas não são mais expoentes de obras de arte e nem exemplos arquitetônicos arrojados. Estamos em um mundo onde a arte é pecado, e ser inteligente ou contestador pode ser perigoso. O corpo é político, então, por que o estimular? Para que mostrar a beleza, se gostamos de ver fuzilamentos, guerras, pandemias e assassinos? Expressar o corpo é pecado, mas expressar morte, guerra e armas, não. Há o estímulo para justiças raivosas. Mas não há espaço para obras, como uma trans nua ou um casal multirracial ou de intergêneros se amando. Beijar não pode, matar pode. Resumindo: o pudor e o recato fazem parte de uma interpretação de um livro escrito por humanos que vem sendo usado mais como arma de intolerância do que para pregar amor e respeito. 

O produtor cultural em uma edição da Parada Gay no início da década de 2000
O produtor cultural em uma edição da Parada Gay no início da década de 2000
Foto: Reprodução/Instagram

Como avalia a edição de retomada presencial da Parada? Houve o tão cobrado conteúdo político no evento?  

A Parada é um evento de ocupação pública, ou seja, uma manifestação política por si só. Milhares de pessoas na rua ocupando um espaço em um País retrógado, que não incentiva a diversão, a cultura e o respeito. Isto é ato político. Ver empresas apoiando uma manifestação LGBT é outro ato político. A feirinha da diversidade retificou 800 nomes sociais gratuitos graças a uma marca de cerveja. Isto é político. Esta mesma empresa patrocinou um evento social que criei com o vice-presidente da Parada, Renato Viterbo, e a Parada acolheu. Outro ato político. Mas tivemos a polícia dispersando as pessoas após o evento. Ninguém retratou isto. Nenhuma ONG LGBT se mostrou indignada por esta anulação do palco da dispersão onde se fomentava arte. Isto mostra como nossa política deve ser mais pensada. Precisamos ampliar o respeito aos LGBTs, que começaram a se mobilizar, décadas atrás, justamente em razão da violência policial. 

Mas a Parada cumpre sua função política? 

Nós podemos e devemos aprender como corpo político. Eu adoro o fetiche por isto: ele me dá consciência de onde meu corpo e minha mente podem chegar. A Parada cumpre o papel dela, mas se todos nós tivéssemos mais consciência do que representamos e do que podemos exigir, como a promoção da cultura e o apoio à arte, menos armas e mais vacinas, mais escolas e comidas saudáveis mais baratas, mais saúde mental, talvez o tema político se faça presente de verdade, e não só na lateral de um trio elétrico com artistas que não estão nem aí com atitude políticas, a não ser ganhar seu cachê ou ficar em rede social fuzilando pessoas e usando termos politicamente corretos, mas sem terem nenhuma ação social humanitária e colletiva. O que falta é a consciência política do corpo e da mente. Sempre repito o lema do Projeto Luxúria: só o orgasmo salva.

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