Inspirado em filme, 'Once' revela um caso de amor com a música
Musical em cartaz em SP tem Lucas Lima como o inseguro cantor de rua na história contada pelas canções e com os atores tocando os instrumentos
Definitivamente, Once é um musical peculiar - ao contrário da opulência que marca produções do gênero, esse é um espetáculo praticamente sem cenário e com raras trocas de figurino; também não há banda ou orquestra, pois são os atores que tocam os instrumentos; além disso, a narrativa é simples, sem mudanças radicais na trajetória dos personagens, e a trama é quase que unicamente contada pela letra das canções; finalmente, ainda que seja uma tocante história de amor, não se vê mais que um beijo na bochecha.
"Once é o Chekhov dos musicais", observa Zé Henrique de Paula, diretor da montagem recém estreada no Teatro Villa-Lobos. "Por trás da aparente simplicidade dos personagens comuns, há várias camadas que revelam a complexa interioridade de cada um - justamente a principal característica do dramaturgo russo."
De fato, em suas peças, Chekhov apresentava reflexões sobre o fracasso e amores não realizados, o que, de uma certa forma, resume a trama de Once - O Musical: nas ruas de Dublin, na Irlanda, um músico (Lucas Lima) toca suas composições para arrecadar alguns trocados. Na verdade, ele se sente infeliz e está prestes a abandonar a música, quando é dissuadido por uma imigrante checa (Bruna Guerin), que se encanta pelas melodias do rapaz e, ela mesmo uma artista frustrada por falta de opções, o convence a continuar e a sonhar com grandes apresentações.
"Aqui, a música é a protagonista", observa Bruna que, com seu habitual talento, confere uma importante comicidade à imigrante, especialmente ao falar com sotaque. "Essa mulher é muito generosa e, ao notar a vocação do rapaz, canaliza sua energia para tirar o desânimo dele. Na verdade, ela busca injetar ânimo em todos que a cercam, mesmo que esteja carregada de frustrações, como a impossibilidade de tocar piano e a dependência de um marido que nunca volta."
No papel do moço desencontrado, prestes a abrir mão de seu maior talento, o cantor e multi-instrumentista Lucas Lima encara um novo desafio profissional, apesar de já estar acostumado com os palcos. "Já cantei muitas das canções desse espetáculo em meus shows, mas aqui é diferente: o olhar é mais profundo e as letras têm uma função narrativa, portanto, fazem sentido", conta ele, que se sentiu inseguro no início do processo. "Ao contrário de mim, o elenco está habituado a cantar, dançar e interpretar, mas todos me acolheram bem e logo fui me enxergando no personagem."
Lima está acostumado a tocar um instrumento, o que é um requisito básico de Once: não há orquestra, os atores produzem o som de uma grande variedade de instrumentos: violão, violino, violoncelo, bateria, baixo, acordeom e piano. Isso trouxe novos desafios mesmo para intérpretes mais veteranos. Bruna, por exemplo, teve aulas de piano para entender o posicionamento nas cenas em que sua personagem toca. "Tenho noções de violão, mas o piano se revelou como um instrumento completo."
"Sou apaixonada pela música desse espetáculo, mas, para participar das audições, precisei fazer aulas de acordeom", conta Andrezza Massei, uma das principais atrizes do musical brasileiro, que vive Baruska. Foi a descoberta de um instrumento complexo e sensível. "Como ele tem foles, é preciso adequar a sua respiração com a do acordeom."
Andrezza, que divide o palco com outros grandes nomes como Nando Pradho e Gui Leal, deixou-se seduzir pela singularidade de Once. "O musical não fala apenas de amor, mas também de vários medos que nos cercam: de viver, de se assumir quem é, de correr atrás dos sonhos", comenta.
O espetáculo é inspirado no filme irlandês de 2006 de mesmo nome (no Brasil, ganhou o título de Apenas uma Vez), escrito e dirigido por John Carney e com trilha sonora criada pela dupla de protagonistas, Glen Hansard e Markéta Irglová, Once - O Musical chegou à Broadway em 2012 e logo faturou oito prêmios Tony, o Oscar do teatro americano. A grande surpresa, porém, veio no Oscar, onde Falling Slowly foi escolhida como a melhor canção original.
"Não é uma peça com cenas virtuosísticas, mas, apesar da aparente simplicidade, há uma grande quantidade de elementos", comenta a diretora musical Fernanda Maia. "Tanto que usamos 52 microfones sem fio. Tudo para captar nuances na sonoridade - até mesmo o silêncio."
Sim, o nada dizer tão importante na obra de Chekhov. "A reação entre a moça e o rapaz é alquímica", diz Fernanda. "Ele tem o instrumento, mas é ela quem provoca a transformação. Mesmo com um sorriso."