Indignados com fim da Banda Sinfônica de São Paulo, músicos criam Filarmônica sem dinheiro do Estado
Como o eufonista Phillips Thor e dois maestros escreveram uma das histórias mais sensacionais de reação ao desmonte de um aparelho cultural público
Era manhã de um domingo, 5 de fevereiro de 2017, quando o regente Marcos Shirakawa enfileirou clarinetistas, trompetistas, saxofonistas, tubistas e trombonistas em frente ao Masp, na Avenida Paulista, para erguer a batuta diante do grupo pela última vez. A Banda Sinfônica de São Paulo, apesar dos 28 anos de atuação que a fizeram uma das melhores orquestras de sopro da América Latina, já andava em luto desde dezembro do ano anterior, quando o governador Geraldo Alckmin anunciou que, por escassez de recursos, todos os 65 músicos seriam demitidos. Uma página no Facebook intitulada SOS Banda Sinfônica pedia socorro "para permitir que os músicos do futuro possam exercer seu ofício" e o maestro Shirakawa olhava para baixo: "Minha tristeza é indescritível". Pela primeira vez, seus músicos haviam tocado chorando.
O fim da Banda Sinfônica seria também o início de uma espetacular história de reação ao desmonte de um aparelho cultural público. Phillips Thor, de 28 anos, um dos quatro eufonistas de Shirakawa, estava no concerto do Masp. Seu instrumento, o eufônio, primo jovem dos sopros com válvulas, é fisicamente parecido com a tuba, uma espécie de tuba tenor, e tocá-lo requer vencer, mais do que desafios técnicos, o próprio ego. Não há repertório clássico escrito para eufonistas simplesmente porque ele, o instrumento, só aparece no século 20. Ou seja: solos de eufônio, quando existem, são os escritos a partir de 1950. E talvez seja por isso que Thor, mais atento ao todo do que ao único, juntou os estilhaços e, ao lado de dois amigos, começou a refazer um sonho coletivo.
Os encontros entre músicos da extinta Sinfônica, da Banda do Segundo Batalhão de Polícia do Exército, da Banda da Polícia Militar de São Paulo e amigos sem banda alguma começaram em 2019 como se fossem churrascos de fim de semana. "O nosso futebol era tocar", diz Thor. As reuniões prosperavam e eles logo alugaram um estúdio na Praça da República. Uma semana antes do primeiro ensaio, Thor e o maestro Eliezer Nascimento enviaram as partituras de três peças que seriam tocadas no dia. "Aquilo foi assustador", diz Thor. "Todo mundo tocou demais e percebemos que havia algo de muito bom ali." Além de músicos, eles chamaram também maestros jovens, que não têm as mesmas chances dos instrumentistas, e assim chegou Renato Ernesto.
Thor, Eliezer e Renato haviam acabado de ver surgir uma orquestra de sopros de excelência jogada pela janela do Estado dois anos antes. Agora, não fariam o mesmo. Ainda que sem recursos extras, começaram a pagar os lanches dos músicos que vinham para o ensaio e a ajudar quem não poderia arcar com os custos de transporte. Uma associação foi formada com os músicos da própria orquestra para levantar dinheiro para o grupo. Com o que arrecadaram em doações, compraram uma bicicleta e, com a bicicleta, fizeram uma rifa para ser vendida, mais uma vez, entre os músicos da própria orquestra. Conseguiram a magia da multiplicação do próprio dinheiro para, finalmente, comprarem estantes para partituras. E o barco seguiu.
Thor e os maestros criaram uma estrutura organizacional para o que já preparavam para se tornar uma empresa. Compartimentaram grupos de câmara, como o Quinteto e o Sexteto de Metais, o Quarteto de Saxofones e o Quinteto de Sopros, e deram um poderoso e justo nome: Banda Filarmônica do Estado de São Paulo, com CNPJ próprio e sem um centavo do poder público. O maestro Júlio Medaglia, em artigo publicado na Revista Concerto, de agosto de 2020, falou em "tapa na cara das autoridades públicas paulistas" e pediu "sucesso e vida longa".
A luta seguiu. Já com 60 músicos, com idade entre 18 e 40 anos, a Filarmônica só deixou de pagar estúdios ao conseguir, por intermédio do maestro Eliezer e pela sensibilidade do major músico Ismael Alves de Oliveira, comandante do Corpo Musical da Polícia Militar de São Paulo, o CMUS, um importante espaço para ensaios. Os primeiros concertos incluíram uma apresentação em Taubaté e, no final de 2020, na Igreja Batista Casa de Deus, centro de Jundiaí, que arrecadou uma tonelada de alimentos para desassistidos da região. Mas o grande feito seria o dia em que pisassem no palco da Sala São Paulo. "Você pode imaginar isso? Uma orquestra tocar na Sala São Paulo com menos de um ano de existência?", diz Thor. A Sala soube da orquestra que surgiu das cinzas e decidiu dar uma chance ao grupo. Assim que a data foi marcada, porém, a pandemia chegou e a Filarmônica se preparou para driblar a morte mais uma vez.
Os músicos fizeram vídeos para homenagear os médicos que estavam no front da covid-19, tomaram a vacina e se trancaram por mais de um ano. Era manhã de domingo, 28 de fevereiro de 2021, quando o maestro Renato Ernesto ergueu a batuta para os espectadores da Sala São Paulo ouvirem as Bachianas Brasileiras n.º 4, de Heitor Villa-Lobos, interpretada pela Banda Filarmônica de São Paulo.