Novo presidente da Biblioteca Nacional será guardião de obras feitas na fase da 'Terra plana'
Acervo tem peças que datam do século 11; nomeação de Rafael Nogueira é mais um capítulo na vasta história de descaso vivida pela instituição
BRASÍLIA - O desconhecido professor Rafael Nogueira, escolhido para chefiar a Biblioteca Nacional, poderá ler no novo emprego um número expressivo de obras do tempo em que alguns setores da ciência ainda consideravam a Terra plana. É um deleite para seguidores do escritor Olavo de Carvalho. Afinal, o guru da família Bolsonaro lhes ensinou a questionar imagens do universo produzidas pela Nasa. No velho centro do Rio, o prédio da biblioteca guarda uma das maiores coleções de incunábulos - livros dos primórdios da imprensa - e pergaminhos de ovelhas feitos séculos antes de Nicolau Copérnico apresentar a teoria de que o planeta girava em torno do sol, alguns com mil anos de existência.
A nomeação de Nogueira é mais um capítulo de uma história de descaso vivido pela biblioteca, com relatos de corredores inundados por chuva e problemas de um sistema ineficaz contra incêndios. Recentemente, a casa passou por uma reforma orçada em R$ 10 milhões, valor inferior ao de muitos livros guardados em suas estantes de aço e jacarandá. O acervo enfrenta a falta de investimentos de atualização e preservação. Com rosto redondo, baixinho e atarracado, características físicas semelhantes à figura de Dom João VI, o rei que trouxe a biblioteca para o Brasil e tem um busto no salão de entrada, o professor terá o desafio de operar um esquema complexo para impedir o roubo de obras visadas pelo crime internacional de arte, que chegam a valer milhões de dólares.
É pouco dizer que a Biblioteca Nacional guarda a história do Brasil. A instituição, aberta a partir de alguns milhares de livros da Biblioteca Real, de Lisboa, e que hoje chega a nove milhões de obras, preserva uma memória da humanidade. Muitas joias estão reunidas num mesmo espaço. Um manuscrito grego dos evangelhos do século 11. O livro Divina Proporção, do padre italiano Luca Pacioli, ilustrado pelo amigo dele Leonardo da Vinci, de 1509. As primeiras edições de Os Lusíadas, de Camões, da Arte da Gramática, do Padre Anchieta, do século 16, e dos romances de Machado de Assis, dos séculos 19 e 20. Os volumes da Encyclopedie Française, referência nos estudos da revolução de 1789.
Sem experiência em preservação e acervo, o professor ficará com as chaves de um cofre que guarda duas Bíblias de Mongúcia. Os livros começaram a ser editados por Gutenberg e foram terminados por seus sócios, em 1462, na Alemanha. Até agora, só deixaram o cofre com escolta da Polícia Federal e holofotes, como presas de operação judicial. Um exemplar de 1455 da Bíblia do pai da imprensa apareceu em leilão, pela última vez, há 20 anos, quando foi arrematada por US$ 12 milhões.
O imponente prédio da Cinelândia guarda ainda o primeiro livro de caça-palavras, escrito por Hrabunus Maurus, em 1605, o melhor da literatura erótica do século XIX, os mapas pioneiros das Américas, o mais amplo conjunto de imagens do País, com gravuras de Goya e Piranesi, fotografias colecionadas pela imperatriz Tereza Cristina e retratos de polacas e italianas que viviam no mercado do sexo e fascinavam o Rio no começo da República. Lá ainda estão obras de escritores de diferentes tempos, de Sérgio Porto, o autor do Febeapá, o festival de besteira que assola o país, a Manoel Antonio de Almeida, do Memórias de um Sargento de Milícias, escritores de temas atuais como hipocrisia e malandragem.
Foi a República criticada em aulas do professor Rafael Nogueira, um monarquista convicto, que construiu, entre 1905 e 1910, o atual prédio da biblioteca. São quatro andares de obras censuradas e censuráveis em tempos de intolerância política e religiosa. Muitas escaparam da inquisição em Portugal. Preservadas pela própria realeza que apoiava os padres, esses livros sobreviveram na instituição. Menos sorte tiveram jornais comunistas que, num tempo mais recente e não menos obscuro, na ditadura militar (1964-1985), foram escondidos por funcionários no porão e acabaram destruídos pela autoritária umidade. Por falar em intolerância, as estantes expõem livros de viajantes do século 19 que registraram costumes dos índios, mapas de quilombos e navios negreiros, livros homoeróticos e romances escritos por mulheres ainda no século 18.
A hemeroteca da instituição é, possivelmente, a mais robusta máquina brasileira e lusitana do tempo, com força para atravessar cada dia do século 20. Ali estão jornais e revistas da época em que cidades como Rio e São Paulo rodavam mais de 15 publicações diárias.
Os visitantes da biblioteca costumam se dividir em dois grupos: o dos pesquisadores, com seus blocos de papel e lápis e o dos turistas e dos atraídos pelas colunas e vitrais da fachada. Mesmo quem aparece com frequência no setor de obras raras, no pavimento superior, prefere usar a tortuosa escadaria com tapete vermelho aos elevadores. É o caminho mais rápido na viagem de contemplação do tempo.
Entre 2004 e 2005, na presidência do colecionador Pedro Corrêa do Lago, a biblioteca sofreu roubos investigados até hoje. Litogravuras foram parar no acervo do Itaú. O banco negociou um acordo e devolveu os desenhos. Mas, desde os terremotos em Lisboa, em 1755, e a fuga da família real portuguesa para o Brasil, em 1808, quando os livros raros foram abandonados no porto do reino e só depois embarcados nos porões dos navios, um dos acervos culturais mais importantes do mundo não enfrentava momento tão difícil como agora.