Prosa de 'Flecha' dialoga com os mitos gregos e as artes plásticas
Matilde Campilho lança seu primeiro livro sem poesia: são pequenas histórias que dialogam com pinturas e esculturas
Matilde Campilho diz que não é poeta. A frase, a primeiro momento, assusta, já que a escritora estreou em 2014 com Jóquei, um livro de poesia que, até para os padrões do gênero, vendeu muito. Foi o título mais popular da Flip do ano seguinte, 2015, quando a editora 34 lançou uma edição no Brasil. Seus poemas, bastante descritivos e imagéticos, continuam a ser replicados na internet. Jóquei se tornou, para muitos jovens, um símbolo sutil de consagração ao amor e ao acaso, à beleza do desencontro e das epifanias. E Matilde continua a tratar destes temas, agora em prosa.
Portuguesa nascida em Lisboa, Matilde Campilho fará 40 anos no próximo dezembro. Enquanto isso, ela vem ao Brasil para lançar no domingo, 10 - na Bienal do Livro de São Paulo -, seu segundo livro, Flecha, apanhado de pequenas histórias escritas antes da pandemia. "Hoje praticamente não leio poesia", conta a autora ao Estadão - e diz estar numa fase de prosa. "As histórias de Flecha já não têm qualquer resquício de um poema. Mesmo as mais curtas, de uma frase apenas, jamais poderiam ser um verso; os poemas [de Jóquei ]eram muitas vezes longos, talvez porque quisessem contar uma história. Não é que eu queira que esse trabalho se apague."
Matilde relembra, em suas palavras, "Do tempo em que escrevia poesia", sempre com um caderno no bolso, os escritos eram feitos em tempo real. Era o começo da década passada, quando a autora se apaixonou pelo Brasil e resolveu morar no Rio de Janeiro. Foram três anos no País (2010-2013), onde ela travou amizades com escritores como Mariano Marovatto e Victor Heringer (1988-2018). "Muito dos poemas do meu primeiro livro começou na rua, em andamento", explica a autora, que hoje depende menos de anotações e mais da memória: "Não podemos escapar à memória". Com a prosa, Matilde conta que sua escrita requer mais perspectiva, mais tempo. Flecha, diferentemente de Jóquei, é um livro escrito a partir de uma mesa de trabalho.
"Este não é um livro de viagens, embora faça referência a tantos lugares. Ao contrário, ele é muito mais um livro que se move entre a memória e a imaginação. Quase todas as histórias têm um grande trabalho de pesquisa. Mesmo aquelas que aparentemente se movem apenas no território da fantasia partem sempre de algum ponto do real", afirma sobre Flecha. E cita uma pensata do poeta italiano Salústio (86 a.C), ao resumir um dos espíritos do novo livro: "Estas coisas nunca aconteceram, mas sempre existiram".
São elementos, muitas vezes, retirados do mundo real, de episódios da memória da escritora, paisagens de contemplação, devoção à arte; são matéria de inspiração. "Pode ser uma figura num quadro de Rembrandt, pode ser alguma estátua em mármore, pode ser um personagem da Odisseia. Pode ser uma canção pop britânica", explica a autora, que coloca a estátua de Davi como foco em uma das histórias: "Sob a réplica estatuária de Davi, numa noite de agosto, um rapaz de linhagem judaica toca na guitarra uma canção popular britânica. No vértice oposto da escadaria do Palazzo Vecchio, uma rapariga de sorvete na mão observa os seus olhos muito azuis em contraste com o mármore branco. Antes de se aproximar dos dois corpos masculinos ela já sabe: aquele postal florentino ficará cravado no seu peito de mulher para sempre, muito para lá da erosão da pedra e do desejo", escreve a autora.
Na história em questão, Sob a Réplica Estatuária de Davi, a figura humana esculpida por Michelangelo (1475-1564) é evocada para dimensionar a potência do sentimento como algo tão durável quanto o mármore usado na concepção da estátua. Para além da fábula bíblica do herói que matou o gigante Golias, Matilde Campilho trabalha com outras figuras da pedra e do mito ao longo de Flecha. A autora faz da erosão uma figura de linguagem usada para representar a vertigem, e mostra como o desgaste é algo comum tanto para as naturezas humana e, na fábula, heroica. A escritora faz desses movimentos geológicos um recurso característico de sua literatura - como quando fala de placas tectônicas ou de vulcões em erupção. Esse movimento também é algo quente e buliçoso.
"Quase todas as histórias têm um grande trabalho de pesquisa: mesmo aquelas que aparentemente se movem apenas no território da fantasia". Como na história de Telêmaco, filho de Penélope e Odisseu, segundo a mitologia grega. Esse repertório se espraia por Flecha, livro gestado em seis anos, e mostra como a escrita é um reflexo das leituras da autora. "A prosa, a meu ver, dá mais tempo a si mesma. Explica as coisas mais devagar - agora que é tudo tão veloz, e os níveis de atenção cada vez mais reduzidos, a prosa serve-me um pouco melhor. Como leitora, digo."
Sobre ser ou não poeta, Matilde é categórica: "Há muitos anos que não escrevo um poema. Desde que faço da escrita o meu trabalho diário, já é mais longo o tempo que passei a escrever prosa do que aquele em que escrevi poesia. Não digo que não possa voltar um dia a fazê-lo, mas essa não é a minha realidade agora. A passagem da poesia à prosa não é nem um pouco rara: ao longo do tempo, vários escritores o fizeram, continuam a fazê-lo", confessa.
Matilde Campilho sabe que a vida humana, assim como a vida do planeta, é feita de momentos extraordinários. Porém, segundo ela, "são sempre poucos, quando em comparação com a quantidade de momentos banais que costuram o tempo". Atenta a esses fragmentos, que alguns escritores chamam de epifanias, ela direciona sua flecha. "Existem situações singulares que mudam o rumo de uma vida, claro. No livro, como no real, estão lá duas, três histórias dessas. Mas o foco são os gestos habituais. São histórias como fotografias. Retratos do instante presente."
