Diretora de 'Que horas ela volta?' comemora crítica positiva
Anna Muylaert fala sobre a repercussão do filme e diz intenção era refletir sobre a divisão na sociedade brasileira ainda do tempo colonial
Em meados deste mês, o Ministério da Cultura anunciou que o longa Que horas ela volta?, da diretora Anna Muylaert, representará o Brasil na competição por uma vaga na categoria de melhor filme em língua estrangeira no Oscar 2016.
A produção recebeu o prêmio Panorama de melhor longa-metragem de ficção no Festival de Cinema de Berlim deste ano. No Festival de Sundance, nos EUA, as atrizes protagonistas, Regina Casé e Camila Márdila, dividiram o prêmio especial de interpretação da mostra World Cinema.
O jornal britânico The Guardian, por exemplo, escreveu que o filme é tem boas atuações e é envolvente, e o longa está com 97% de aprovação do público no site americano especializado Rotten Tomatoes.
A obra é um drama familiar, que mostra como uma babá, representada por Regina Casé, que trabalha para uma família rica de São Paulo, vê sua vida se transformar quando a filha (Camila Márdila) decide se mudar para a cidade. Ela vem do Nordeste para prestar o concorrido vestibular da Universidade de São Paulo e desestabiliza as relações sociais consolidadas da casa em que a mãe trabalha. "Eu não me considero melhor, mas também não me considero pior que os outros", afirma.
Em entrevista à DW, Muylaert diz que se surpreendeu com a enxurrada de críticas positivas recebidas pelo filme. Ela reconhece ser difícil que Casé leve o Oscar de Melhor Atriz, mas afirma que, em se tratando dela, "o céu é o limite".
DW Brasil: Há quem defina Que horas ela volta? como um "tapa na cara" da classe média alta brasileira. Era essa a sua intenção?
Anna Muylaert: Eu queria fazer um espelho, mostrar o jogo se paratista que nós brasileiros praticamos desde o tempo colonial – sem nos darmos conta, como se fosse uma coisa natural. Se esse espelho funcionasse – e creio que funcionou –, ele permitiria que víssemos nossas ações como se estivéssemos de fora e, a partir daí, poderíamos julgá-las de acordo com cada um e seu papel nesse jogo.
Como surgiu a ideia para o filme? Você já tinha vivenciado essa complexa relação patrão-empregada doméstica?
O filme nasceu quando virei mãe. Antes de tudo, eu queria falar sobre maternidade e a desvalorização do trabalho de empregada doméstica e, consequentemente, da mulher. A figura da babá entrou nesse contexto: do afeto de aluguel. Mas, a partir daí, naturalmente, o filme se expandiu para as questões sociais que ele traz. Desde criança, eu estranhava essa figura que estava lá, mas não podia ser considerada. Era como uma presença ausente, e isso sempre foi uma questão para mim.
O filme estreou no Brasil no fim de agosto. Como está sendo a recepção?
A recepção superou todas as minhas expectativas. Além de funcionar como um case de distribuição no Brasil, ele está atingindo o público e a crítica de uma maneira feérica e muito emocional. Fiquei duas semanas recebendo mensagens no Facebook a cada dez minutos, de pessoas contando histórias muito emotivas sobre suas vidas.
E a recepção internacional, você esperava que fosse tão positiva? O que contribuiu para isso?
Eu esperava repercussões boas, mas jamais essa chuva de críticas positivas vindas de tantos países e culturas diferentes. Acho que as pessoas do mundo todo gostam do filme por vários motivos. Primeiro, porque é um filme muito crítico e baseado em fatos reais que acontecem em todo o Terceiro Mundo. Segundo, porque é um filme muito emocional, com poder arrebatador. E terceiro, porque temos uma atriz protagonista em êxtase!
Sim, a atuação de Regina Casé tem sido aclamada pela crítica. O jornal alemão taz, por exemplo, escreveu que "a atriz principal, Regina Casé, já faz o filme valer a pena".
Você pensou no nome da atriz para o papel desde que escreveu o roteiro?
Não escrevi para nenhuma atriz, mas desde que cheguei a esse formato de roteiro, sempre pensei na Regina. Sou fascinada por ela como atriz, desde o Trate-me leão [peça do grupo Asdrúbal Trouxe o Trombone, encenada nos anos 1970], a que assisti quando era adolescente. No filme Eu, tu, eles [de Andrucha Waddington, 2000], ela mostrou um lado que não conhecia até então, e comecei a pensar nela. Além de ser uma atriz fabulosa, gosto do tipo físico dela, sinto que ela representa as três grandes raças do Brasil: branca, preta e índia.
Se Que horas ela volta? concorrer ao Oscar de melhor filme estrangeiro, e Regina Casé, na categoria de melhor atriz, será o mesmo caso de Central do Brasil e Fernanda Montenegro, em 1999. Você acha que, para a atriz, o final pode ser feliz dessa vez?
Segundo os americanos que consultamos, é muito mais fácil o filme entrar na categoria filme estrangeiro do que uma atriz estrangeira concorrer com atrizes americanas. Para eles, isso é bem improvável. Mas, vamos ver. Em se tratando de Regina Casé, o céu é o limite.
Como você avalia as chances de o filme ficar na lista dos nove pré-selecionados para o Oscar de filme estrangeiro, entre os cinco indicados ou até mesmo de levar a estatueta?
Tenho as mesmas informações que qualquer internauta. Leio as previsões para o Oscar e vejo que nosso filme está em várias delas. A partir disso, claro, ficamos motivados a trabalhar com afinco, mas, se as chances são reais ou não, só Deus sabe.
Além da protagonista, o filme tem outras duas mulheres como personagens principais. Esse foco nas mulheres foi intencional?
Não foi intencional nem eu imaginava que o filme abriria questões feministas. Mas sendo um filme sobre educação e afeto, foi natural que as mulheres fossem protagonistas – afinal, no Brasil e em outros países latinos, esses são ainda considerados assuntos de mulheres.
A personagem Jéssica desafia o status quo da divisão de classes. Você acha que, com a ascensão da classe C, a mentalidade da sociedade brasileira está mudando aos poucos?
Creio e sinto que sim. Tenho encontrado muitas Jéssicas nas palestras que faço pela cidade e pelo país. As coisas estão mudando, o brasileiro de classe social menos favorecida, pelo menos o jovem, tem mais autoestima e sente-se cidadão. Mas a Jéssica tem, é claro, um quê também de uma utopia – de um dia em que todo jovem brasileiro seja como ela é.
O fato de o filme ser rodado quase que somente na mansão em que Val (Regina Casé) trabalha facilitou a produção ou tornou o roteiro mais desafiador?
Os dois. Resolvemos fechar para facilitar a produção, mas na mesma época revi Teorema [de Pier Paolo Pasolini, 1968] e me senti inspirada e segura para tocar o barco praticamente todo dentro da casa.
Como você avalia a atual situação do cinema brasileiro? Por que considera que Que horas ela volta? se destacou?
Fico feliz por termos muita produção, mas acho que o modus operandi ainda está se profissionalizando e a qualidade média dos filmes ainda é baixa. Creio que o filme se destacou, em primeiro lugar, porque tem vocação popular, mas é respeitoso com o público. É popular, mas não menospreza o espectador. Como já disse, apesar de ser um filme crítico, ele é também um drama sobre uma mãe recuperando o amor de sua filha e seu amor próprio. E o filme tem muito humor.