Amor no espectro 2 mostra como autistas enxergam o mundo
Nova temporada de série da Netflix mostra jovens adultos no espectro autista que buscam encontrar um parceiro
A espera acabou para os fãs de Amor no Espectro, série australiana da Netflix que retrata jovens adultos no espectro autista em busca de um amor. A segunda temporada do reality de dates estreou no dia 21 de setembro na plataforma com seis novos episódios, trazendo personagens já conhecidos do público e novatos.
Assim como na temporada anterior (escrevi sobre ela aqui), conhecemos um pouco mais da história de cada um deles, e acompanhamos suas tentativas de construir um relacionamento duradouro com alguém - sempre com a ajuda da especialista Jodi Rodgers, que trabalha com jovens no espectro; e com o apoio empolgado das famílias.
Voltam para esta temporada o simpático Michael, cujo maior sonho é ser um marido; o especialista em dinossauros Mark, que, apesar de seus esforços, fará 30 anos sem nunca ter namorado; Chloe, a mais jovem entre eles, que aparece durante um encontro arranjado com o próprio Mark; e o casal carismático Jimmy and Sharnae, que ficou noivo na temporada anterior.
Além das figuras que já conhecemos, somos apresentados a novos integrantes: o romântico Ronan, viciado em carros; a inteligente e extrovertida Theo, que coleciona gravetos e possui também um diagnóstico de TDAH; Kassandra, que adora fazer cosplay; e Jayden, um jovem bissexual que terá seu primeiro encontro da vida em um dos episódios.
No caso de Theo, jovem de 22 anos nascida na Romênia e adotada com apenas 3 anos, o programa também serve como um suporte para que ela lide com sua ansiedade. Em conversa com a especialista Jodi Rodgers, ela conta que sempre teve muito medo de ser abandonada. "Meu maior medo é ser deixada no altar no dia do casamento. Acho que ninguém vai entender o meu autismo e meu TDAH", conta.
Apesar de comum nas pessoas no espectro, crises de ansiedade são algo com que todos nós podemos nos identificar. Para explicá-las, Jodi faz um diagrama mostrando como a ansiedade enche nossos cérebros com perguntas que começam com "e se?". A ideia seria trocar questões como "E se a pessoa não gostar de mim? E se eu não tiver nada para falar? E se houver um silêncio que eu não consigo preencher?" por outras como "E se tudo for maravilhoso?"
É com essa atitude que Theo toma coragem para dar o primeiro passo. Para ela, ser homem ou mulher não faz tanta diferença - o que importa é a personalidade. Uma das questões mais interessantes da produção, inclusive, é o modo como a sexualidade dos personagens é tratada - sempre com leveza e sem qualquer preconceito.
Tanto Jayden quanto Theo vão a encontros com homens e mulheres, sempre abertos a experimentar. Apesar de não conhecer profundamente a sociedade australiana, imagino que isso seja um recorte da realidade dos jovens LGBTQIA+ do país - nem todas as famílias devem ser tão progressistas quanto as apresentadas na série.
O único momento em que essa diferença fica clara é durante um encontro de Jayden. Ao contar para o rapaz como sua sexualidade é tratada naturalmente em casa, o outro jovem conta que, com ele, as coisas não foram tão simples. Ele veio de uma família religiosa, que não aceita sua orientação sexual, e passou por momentos muito difíceis.
Assim como na questão da sexualidade, o elenco é composto apenas por famílias brancas, geralmente com alto poder aquisitivo, que dispõe dos recursos necessários para criar uma criança no espectro. É visível o quanto pais e irmãos são cuidadosos e presentes, e como o autismo é algo tratado naturalmente em casa. Eles apoiam a decisão dos filhos de ir a um encontro às cegas, ou se cadastrar em um aplicativo de dates, pensando na felicidade deles.
Sendo uma representação realista ou não, a série serve como um bom exemplo de como o autismo deveria ser tratado na sociedade, sem estigmas ou preconceitos. Afinal, são pessoas que querem exatamente as mesmas coisas que nós, mas tem um jeito diferente de enxergar a realidade e interpretar os nossos códigos de conduta.
Jayden explica isso muito bem ao contar como aceitou seu diagnóstico e percebeu que, para as pessoas do espectro, nem tudo é tão simples e intuitivo. "Há todas essas normas sociais que as pessoas têm a intuição de agir de acordo. Mas, para mim, essa intuição não está lá necessariamente. Eu gosto de etiqueta social, mas ela precisa fazer sentido pra mim", conta.
Para ele, um simples aperto de mão tem um significado histórico: você faz com a mão direita porque era a mão com que os antigos cavaleiros seguravam a espada. Ao utilizar essa mão ao cumprimentar alguém, você mostra que está simbolicamente desarmado. Resumindo: quando uma norma não pode ser explicada, ela perde seu sentido.
Essa literalidade e a dificuldade de entender certos comportamentos e emoções é muito comum nas pessoas que estão no espectro, pois, geralmente, elas se guiam por uma visão cética e quase científica da natureza humana. Muitas vezes, elas não conseguem entender a ironia e outras figuras de linguagem que não são completamente literais, e se tornam "inconvenientes" aos olhos dos neurotípicos por seu excesso de sinceridade.
Isso me faz lembrar do dia em que meu irmão Leonardo, que tem 20 anos e um autismo antes classificado como Síndrome de Asperger, viu meu novo cabelo. "Leo, você gostou?", perguntei, para depois ouvir um sonoro não. Ele me disse que pareço um homem com esse corte, o que me levou a fazer um longo discurso sobre o gênero como construção social (isso fica para outro momento).
Apesar de não ter me impactado tanto quanto a primeira temporada (talvez pela falta do fator surpresa), a série continua a trazer discussões muito importantes que podem ser úteis para todos. Acredito que a compreensão sobre essa condição está longe de ser ideal - a imagem da criança autista que não se comunica vem sempre à mente quando as pessoas pensam em autismo.
Isso tem mudado aos poucos, com diversas produções como Atypical, The Good Doctor e, claro, Amor no Espectro. É muito bem-vinda a iniciativa dos estúdios e plataformas de streaming de trazer esse assunto à tona e fazer com que as pessoas entendam, pelo menos um pouquinho, como é o mundo na cabeça de um autista. Ganham as pessoas no espectro e ganha a sociedade como um todo.