‘The Underground railroad’ é uma obra-prima brutal
Série da Amazon Prime Video marca a estreia para a TV de Berry Jenkins, diretor do premiado ‘Moonlight: Sob a Luz do Luar'
Brutalidade, horror e fantasia se entrelaçam em The Underground railroad, série da Amazon Prime Video que narra a agoniante saga de uma jovem escrava em busca da liberdade, nos Estados Unidos. A produção marca a estreia para a TV de Berry Jenkins, de Moonlight: Sob a Luz do Luar, que ganhou o Oscar de Melhor Filme em 2017, e Se a Rua Beale falasse, com a adaptação do romance homônimo, de Colson Whitehead. Lançado em 2016, o livro foi um grande sucesso de crítica e público, conquistando diversos prêmios como o Book Award Prize e o Pulitzer Prize de ficção. No Brasil, ele ganhou duas edições: a primeira pela HarperCollins (2017) com o subtítulo ‘um caminho para a liberdade’ e a segunda pela TAG Curadoria (2018).
The Underground railroad é uma obra-prima. Ainda que algumas escolhas de Jenkins, principalmente na forma de retratar as torturas sofridas pelos escravos, possam ser questionadas, a combinação entre trilha sonora, direção e fotografia são primorosas. Isso não significa que seja uma série confortável de assistir, pelo contrário. O ritmo lento da narrativa somado ao movimento tranquilo da câmera, que transita com calma pelos planos e ambientes imersos na brutalidade inerente a escravidão, podem sobrecarregar o espectador. O primeiro episódio, por exemplo, traz uma das cenas mais perturbadoras da produção, um almoço com música ao vivo e brancos dançando enquanto um escravo é acoitado e queimado vivo.
Ambientada no século XIX, nos Estados Unidos, a série mescla realidade e ficção dos negros escravizados do Sul que buscavam a liberdade rumo ao Norte, com apoio de uma rede clandestina conhecida como "Underground Railroad". Enquanto na realidade o termo foi usado para representar as rotas e esconderijos criadas em segredo por abolicionistas para ajudar escravizados a fugirem, no realismo fantástico de Whitehead e recriado por Jenkins, ela dá vida para uma ferrovia subterrânea, com plataformas, trilhos e vagões cujas rotas são constantemente alteradas, perigosas e onde o destino final é desconhecido. Uma metáfora também para o caminho tortuoso da luta pela liberdade.
Assim, a história começa apresentando Cora (Thuso Mbedu), uma jovem escrava numa tradicional fazenda de algodão da Georgia que decide fugir com outro escravo recém-chegado, Caesar (Aaron Pierre). A partir daí ela será caçada incessantemente por Ridgeway (Joel Edgerton), um caçador de recompensas..Os episódios ganham os nomes dos estados pelos quais Cora passa, mostrando também as diferentes políticas raciais locais e suas implicações na vida dos negros. Um dos trunfos da adaptação vem da habilidade de Jenkins em mostrar também momentos de afetividade, ternura e humanidade mesmo em um cenário onde o horror é a norma.
A trajetória de Cora é marcada por diferentes faces da violência; a própria condição de escrava, o abandono materno (a mãe seria a única a escrava que conseguiu fugir da fazenda), a violência sexual e a sucessão de traumas gerados também pelas perdas, por aqueles que ficam para trás no decorrer da sua fuga. Mesmo assombrada pelos horrores, Cora não desiste. Nesse sentido, a série capta também a força necessária para sobreviver ao horror, às feridas deixadas pela escravidão. Uma ferida ainda aberta nos Estados Unidos ou no Brasil, talvez esteja aí um dos motivos do desconforto causado pela série.