'A Fazenda' ressalta sofrimento de feios e poder dos belos
Rico Melquiades provoca discussão sobre o padrão estético que julga, segrega e pode adoecer pessoas
Vivemos a era das aparências, da superficialidade, do reducionismo da primeira impressão, de padrões estéticos excludentes. Somos reféns da ditadura da beleza perfeita. Estamos sob permanente julgamento e, ao mesmo tempo, julgamos os outros e sofremos com a autocobrança para forjar uma imagem escultural.
Em 'A Fazenda', Rico Melquiades chorou em uma festa ao se sentir inferior no meio de homens explicitamente bonitos. Em outro momento, teve uma crise após ser chamado de “feio para car*lho” pela rival Solange Gomes. O humorista é adepto de procedimentos estéticos a fim de se adequar às exigências do universo das celebridades.
Durante um embate com o modelo e influenciador fitness Erasmo Viana, por quem tem crush, Rico refletiu a respeito da ilusão da efígie. "Beleza realmente não põe mesa, só até os 15 minutos. Depois que você conhece (a pessoa), vê que realmente não vale nada. Está aqui um cara tão lindo, mas grosseiro", disse.
Ao vivo, o peão mais polêmico do reality show da RecordTV insistiu na questão. “Quem tiver o seu ‘feinho’, agarre, não largue. Essas pessoas bonitas assim acham que podem tudo, são grosseiras, estúpidas.” Rico se tornou porta-voz de quem já sentiu ou ainda sente dores emocionais por ser visto como feio e discriminado em uma sociedade que idolatra o arquétipo de deuses gregos.
A televisão tem culpa por esse desvirtuamento? O que fazer para não colocar a saúde mental em risco ao se sentir segregado nem se deixar dominar pela vaidade extrema? Buscamos respostas com Eliziane Jacqueline dos Santos, doutora em Saúde Coletiva, psicóloga, pesquisadora e professora da Faculdade Santa Marcelina, de São Paulo.
Como a psicologia explica a dor emocional sentida por quem se vê ou é visto como não bonito, a exemplo de Rico Melquiades, em uma sociedade que pressiona a todos pela beleza impecável?
Temos no mundo contemporâneo um ideal estético que na visão de Foucault (o filósofo francês Michel Foucault) corresponde ao exercício de poder pela disciplina dos corpos, a qual observamos nas mídias, principalmente, a disseminação do corpo ideal (sarado, musculoso, sem rugas e manchas na pele, cabelos impecáveis, pele sedosa), cuja beleza nem sempre alcançável leva o sujeito a perseguir esse ideal na tentativa de ser aceito pelo grupo social. É nesse sentido que a demanda do sujeito pelo reconhecimento dos outros passa pelas modificações corporais, e que em um momento ou outro produz conflitos, pois não há esse reconhecimento pelo seu esforço para “ser belo” ou “ficar bonito”. Em muitas ocasiões, o sujeito atende à demanda que é do 'outro', o qual dita suas exigências, mas que no fundo não corresponde ao seu desejo.
Somos muito influenciáveis?
Importante ressaltar que esses sujeitos são influenciados por uma imagem falsa que os aprisiona num padrão de beleza irreal, esquecendo-se da sua identidade social que é formada por outros aspectos, como espiritualidade, intelectualidade, qualidade das relações afetivas e demais experiências no decorrer da vida. No campo da psicanálise, esse corpo que nos constitui é atravessado pela linguagem, erógeno, mediado pelas pulsões e que pede significação e sentido no campo das relações com esse 'outro', para que de fato esse sujeito se reconheça. E tal tentativa, ao fracassar no laço social, gera sofrimento e desamparo. Essa dor emocional está ligada ao sentimento de rejeição, pois mesmo usando de todos os artifícios para se sentir belo, ainda não corresponde às exigências de uma sociedade que condena aqueles que não se encontram nesses padrões estéticos. A beleza é algo subjetivo, no entanto, se tornou mercadoria no discurso capitalista e, como consequência, os sujeitos que não estão nesse ideal são excluídos. É a questão de ‘ter’ beleza e não de ‘ser’ belo, como uma qualidade interior.
A pressão por estética pode provocar quais transtornos? Há tratamento?
A busca pelo corpo perfeito para atender às exigências sociais leva a vários transtornos emocionais e sofrimento psíquico em virtude desse vazio existencial e do sentimento de fracasso, como distúrbios alimentares (anorexia e bulimia), transtornos dismórficos corporais, a vigorexia, depressão, despersonalização (que seria a perda da consciência de sua originalidade e de suas qualidades), transtornos de imagem, síndrome do pânico, ansiedade, doenças psicossomáticas. Se se não forem tratadas, podem levar ao suicídio. Na escuta dessas questões do sujeito, o tratamento é psicológico, e nos casos mais graves, medicamentoso. Convém lembrar que as questões que levam ao adoecimento são de natureza emocional e a saúde mental deve ser priorizada.
Um comportamento comum de pessoas anônimas é a comparação estética com famosos (atores, modelos, influenciadores etc.). Esse parâmetro tem um lado saudável ou é totalmente nocivo?
Esse padrão de comportamento é nocivo e tóxico, porque a mídia faz do sujeito comum que se torna famoso um exemplo de beleza. Lembrando Bauman (o sociólogo e filósofo polonês Zygmunt Bauman), que diz dessas relações líquidas, o fugaz e o hedonismo são as marcas que se apoderam sob os corpos de modo que os sujeitos se espelham nesses padrões momentâneos expostos pela mídia e querem se tornar iguais ou parecidos, negando muitas vezes sua própria essência.
A permanente insatisfação com a aparência e a obsessão por mudanças estéticas configuram uma doença? Qual o limite da vaidade?
A indústria da estética, que antes capturava somente as mulheres, hoje também pega os homens que consomem seus serviços: depilação, harmonização facial, cirurgias plásticas, abdominoplastias e procedimentos para melhorar a pele. Fato que gera insatisfação com esse corpo real que temos, levando à busca de uma melhor aparência para sermos vistos/percebidos. Podemos dizer que, atualmente, vale tudo para ser uma imagem consumível: dieta, malhar exaustivamente e cirurgias plásticas, entre tantos procedimentos estéticos para atender ao que é ditado pela moda, ou seja, um corpo plastificado, sem suas formas naturais, esse corpo-nada que se parece com um cabide que leva os signos do consumo que ditam o controle dos corpos, gerando frustração. É a ética do ‘ter’ em detrimento do ‘ser’, vendida nesse capitalismo perverso, cada vez mais divulgado pela indústria estética como um valor. A vaidade tem seus limites, e quem dita os mesmos é a sociedade quando não reconhece as tentativas outrora fracassadas pelos sujeitos ao não atender esses ideais, afetando homens e mulheres. Talvez seja o caminho mais árduo dessa busca incessante: não ser reconhecido pelos 'outros', a quem se endereça as tentativas de ser belo.
As redes sociais promovem o bullying contra pessoas consideradas feias. Como preservar a saúde mental de quem é vítima desses ataques?
Um indivíduo com autoestima e seguro de si não se sente afetado por esses discursos, uma vez que nas redes sociais esses ataques são constantes. Como disse, a beleza é subjetiva e o sentir-se feio vem do 'outro'. Para se preservar de experiências como o bullying na internet, o sujeito precisa ignorar e entender que essa fala não é endereçada para ele, mas é consequência de uma sociedade dispersa em seus valores, cujos equívocos se reproduzem nas relações sociais.
Os meios de comunicação (TVs, revistas, publicidade etc.) erram ao escalar sempre pessoas explicitamente bonitas e raramente mostrar aqueles considerados feios?
A mídia equivocadamente erra ao ditar os padrões de beleza que ela entende serem o ideal, afetando em parte sujeitos que se encontram fragilizados nos seus laços sociais. Erra ao exibir, principalmente nos realities shows, pessoas consideradas bonitas, causando distorções no imaginário social, quando comparamos com a realidade que temos. A mídia vende imagem e ganha com essa escolha, porque mexe na zona de conforto ao privilegiar ou dar espaço para tais publicidades.
(Comentário do blogueiro: ao promover a todo momento padrões estéticos em sua programação, a TV atrai anunciantes que oferecem infinidade de produtos e serviços para o telespectador hipoteticamente atingir aquele nível de beleza. Como observou Dra. Eliziane Jacqueline dos Santos, a mídia lucra ao supervalorizar os lindos e incentivar os comuns e feios a investirem em uma transformação física).