A ‘novela dos pretos’ termina aclamada pelo público e deixa a Globo mais realista
‘Vai na Fé’ tratou de racismo sem militância e conquistou a aprovação não experimentada pelo elenco negro de ‘Babilônia’
Em 2015, ao conversar com Roberto D’Ávila na GloboNews, Fernanda Montenegro deu sua explicação para a forte rejeição à novela das 21h ‘Babilônia’.
“É a primeira novela em que dois terços do elenco são de atores negros, que não são subservientes, que ascendem por um esforço próprio enorme, e que se casam de uma forma muito miscigenada”, disse.
Para a atriz, que interpretou a advogada lésbica militante Teresa, o racismo do público foi velado “porque o preconceito de raça realmente dá cadeia”.
Entre os pretos de ‘Babilônia’ estava Paula, uma jovem nascida na favela que cursou Direito a partir do sistema de cotas. A personagem com discurso inclusivo e progressista foi interpretada por Sheron Menezes.
Oito anos depois, a mesma atriz é a cara do sucesso da novela mais negra já produzida pela Globo. ‘Vai na Fé’ termina com audiência média de 23 pontos, índice maior que o das duas antecessoras na faixa das 19h.
Os telespectadores e as redes sociais abraçaram a trama e especialmente o núcleo negro onde se destacaram Sol (Sheron Menezes), Jenifer (Bella Campos), Ben (Samuel Assis), Kate (Clara Moneke) e Bruna (Carla Cristina Cardoso).
O racismo foi retratado de maneira orgânica em momentos pontuais, sem ativismo panfletário. Uma escolha acertada para abordar tema que ainda divide as opiniões.
A pequena revolução está justamente em apresentar personagens pretos inseridos nas tramas a partir de diversas questões, como ética, honestidade, ascensão social pela educação e diversidade sexual.
É assim na vida real: o racismo se faz presente no cotidiano, mas os negros têm outras preocupações igualmente importantes. Ninguém deve ser refém do paralisante medo da discriminação.
‘Vai na Fé’ inova ao normalizar protagonistas e principais coadjuvantes com pele escura após 72 anos de telenovelas com maioria de brancos no elenco e negros quase sempre em papéis menores e circunstancialmente pejorativos, como o de empregada doméstica e bandido.
Criada por uma autora branca, Rosane Svartman, a comédia dramática fez o público esquecer o colorismo e prestar atenção nas atitudes e nos sentimentos dos personagens. No mundo ideal, e ainda distante, seria o correto: enxergar e tratar as pessoas igualmente a partir de sua essência, não de acordo com a tonalidade da pele.
Para que a evolução representada por ‘Vai na Fé’ acontecesse em 2023, atores pretos foram expostos a sofrimento. Zezé Motta era xingada diariamente pelo romance inter-racial com Marcos Paulo em ‘Corpo a Corpo’, de 1984. Taís Araújo caiu em depressão devido aos ataques de intolerância à sua Helena de ‘Viver a Vida’, em 2009.
No ano passado, a Globo criou uma diretoria de diversidade e demostra empenho em produzir uma teledramaturgia mais fiel à proporcionalidade racial da população, formada por 45,3% de brasileiros que se definem pardos e 10,6% autodeclarados pretos, segundo o IBGE. Que assim seja.
A emissora tem o apoio dos grandes anunciantes que patrocinam as novelas. As marcas estão cada vez mais dedicadas a conversar com todas as camadas econômicas e étnicas da sociedade. Dá para renovar a fé em uma televisão mais inclusiva.