Autor demitido provoca Globo a quebrar um tabu em novelas
Aguinaldo Silva cria um perfil de personagem que a emissora jamais ousou colocar como protagonista por temer reação do público
‘Quando é que a gente vai ver numa novela uma mulher trans empresária, super poderosa, descendo num terraço da Faria Lima de helicóptero, botando pra quebrar nas reuniões de negócios... e protagonista?’, escreveu Aguinaldo Silva no Twitter.
“Quando você escrever uma, você não é autor de novelas?”, comentou um seguidor. “Eu costumava ser, agora já não sei”, respondeu o dramaturgo.
A provocação de Silva tem alvo certo: a Globo, onde trabalhou por 40 anos. Criador de sucessos inigualáveis como ‘Roque Santeiro’, ‘Tieta’ e ‘Senhora do Destino’, ele não teve o contrato renovado em 2020.
O canal tem escalado cada vez mais atrizes transexuais, porém, nenhuma delas foi protagonista de novela ou série até aqui.
Nos últimos anos, vimos em cena Gabriela Loran (Luana de ‘Cara e Coragem’), Marcella Maia (Morte em ‘Quanto Mais Vida, Melhor’), Glamour Garcia (Britney de ‘A Dona do Pedaço’), Maria Clara Spinelli (Mira em ‘A Força do Querer’), entre outras.
Homossexual assumido e ex-militante da causa (editou o primeiro jornal gay do país, ‘O Lampião’, na década de 1970), Aguinaldo escreveu memoráveis papéis LGBTs na teledramaturgia.
Um deles discutiu a questão da transexualidade. Em ‘Tieta’, de 1989, a saudosa estrela Rogéria interpretou Ninette, a fiel escudeira da protagonista. Ela chocou a conservadora Santana do Agreste ao reagir a um assédio sexual.
Na cena, Amintas (Roberto Bonfim) apalpa o bumbum dela, que revida com um soco no rosto. “Moça, a senhora enlouqueceu?”, reclama o atrevido nocauteado. “Moça coisa nenhuma! Meu nome é Valdemar”, diz a loira, para espanto das carolas do vilarejo.
Em outro momento, Tieta (Betty Faria) se decepciona com o discurso preconceituoso de seu sobrinho e amante, Ricardo (Cássio Gabus Mendes).
“Tieta, um homem é um homem, uma mulher é uma mulher. Deus criou o sexo com papel definido, uma função”, afirma o ex-seminarista. Ele sugere que Ninette deve se “corrigir”.
“Quem não se encaixa nesse papel, tu acha que a gente deve fazer o quê? Afogar no mar?”, questiona Tieta, que havia sido expulsa da cidade, décadas atrás, por viver livremente sua sexualidade.
“Você quer que todo mundo seja igual, se comporte do mesmo jeito?... O ser humano não foi feito por decreto”, insiste a milionária progressista. “Você não admite que uma pessoa não viva dentro do jeito que tu considera normal... Quem é tu para julgar?”
Em sua última novela, ‘O Sétimo Guardião’, de 2018, Aguinaldo Silva colocou Nany People na pele de Marcos Paulo.
Uma atriz transexual interpretando uma cientista trans que decidiu manter o nome masculino de batismo. Pequena revolução. O público gostou da personagem debochada.
A demissão do autor aconteceu após o fim da novela, marcada por problemas judiciais e audiência abaixo do esperado. Um deslize que teria sido usado por inimigos internos para apagar a bem-sucedida trajetória dele no canal.
Radicado em Lisboa, onde escreve suas memórias, Aguinaldo Silva revela ter na cabeça um folhetim protagonizado por uma transexual. “Divina Maria da Conceição! É esse o nome da minha personagem trans que bota pra quebrar na Faria Lima.”
A Globo não sabe o que está perdendo.