A relação de Meghan e ‘Bridgerton’ com o racismo no Brasil
Discriminação denunciada pela duquesa de Sussex e série com negros protagonistas tocam em questões raciais pouco debatidas
O Reino Unido da ficção visto em Bridgerton, série-sensação da Netflix, tem negros como nobres e em posições na alta sociedade no início do século 19. A começar pela rainha Charlotte (Golda Rosheuvel) e o cobiçado Simon Basset, 10º Duque de Hastings (Regé-Jean Page).
Duzentos anos depois, o Reino Unido de hoje, sob o reinado de Elizabeth II, assiste à revelação de que membros do clã Windsor questionaram o quão negro seria Archie, o filho do príncipe Harry com Meghan Markle, ex-atriz nascida de um casal interracial, alçada ao título de Duquesa de Sussex.
O avanço na dramaturgia, onde até pouco tempo negros eram apenas coadjuvantes, se choca com o preconceito de sempre na vida real, com o racismo entranhado em todas as camadas da sociedade — refletido na presença desproporcional de negros e negras na televisão, nos filmes, nas plataformas de streaming e na mídia em geral.
Há elementos do racismo denunciado por Meghan em entrevista a Oprah Winfrey na TV com o colorismo no Brasil, onde pretos de pele mais clara ganham certa proteção contra olhares racistas. Assim como podemos vincular aspectos da monarquia negra de Bridgerton com a escravidão no nosso País e a busca de negros por status como escudo antidiscriminatório.
O blog ouviu a psicanalista e doutoranda em Antropologia Jaqueline Conceição a respeito.
A senhora ficou surpresa com a revelação de que membros da família real britânica se preocuparam se Archie, filho de Harry e Meghan, seria negro claro ou negro escuro?
A primeira coisa a esclarecer é que a divisão racial é um conceito criado por sociólogos e antropólogos ingleses, justamente para justificar a exploração do continente africano. Então, não é algo extraordinário essa preocupação com a cor da pele do herdeiro do príncipe. Não fiquei nem um pouco surpresa. O colorismo passa pela diversidade dos tons de pele negra, mas o aspecto mais importante em relação a isso é a leitura social e política, e muitas vezes também econômica, que a variação da cor da pele negra tem. Embora negra, Megan possui pele muito clara. Dependendo do lugar em que ela esteja, ou seja, comparada a uma mulher negra de pele mais escura, ela pode ser vista como branca. Essa é dinâmica do colorismo no Brasil: quanto mais clara a pele da pessoa, fica mais próxima de ser vista como branca, sobretudo se comparada a negros de pele escura.
Com a peculiar classificação racial brasileira, Meghan Markle poderia nem seria vista como negra aqui. Já em outros Países, a maioria dos afrodescendentes de pele clara, como a duquesa, faz questão de se declarar e defender sua negritude. Por que tantos brasileiros rejeitam a própria ancestralidade racial?
Discordo que ela não seria vista como negra, porque o colorismo torna a identificação racial algo que se dá a partir do estabelecimento das relações sociais, culturais, políticas e econômicas. Por exemplo, no Rio de Janeiro, uma cidade solar onde pessoas brancas se bronzeiam e ficam com o tom da pele mais escuro, a definição local de negro é o sujeito da pele marrom a preta. Isso inclui cabelo crespo, nariz largo, bairro onde mora e alguns outros traços físicos culturalmente reconhecidos como de pessoas negras, como a bunda da mulata. No interior do Rio Grande do Sul, qualquer pessoa que não seja branca, loira e de olhos claros é vista como não branca, portanto, o lugar mais possível é de ser negra. Pessoas pobres também podem ser vistas como negras no sul do País. E ser visto racialmente como branco ou negro tem implicações práticas na vida das pessoas no Brasil, justamente por nossa herança escravocrata. Não podemos esquecer que durante 380 anos, o Brasil era dividido entre os brancos e seus escravos, formados por africanos e indígenas.
Não se assumir negro é autopreconceito ou tentativa de fugir do racismo estrutural?
Não se assumir negro certamente é uma tentativa de fugir do racismo estrutural, que dentre outras coisas ensina o auto-ódio a pessoas negras. O auto-ódio é a repulsa de si mesmo que está presente no inconsciente de pessoas negras, e que é projetado em tudo o que remete à negritude, sejam outras pessoas negras ou símbolos negros como samba, candomblé, capoeira etc.
A discussão de racismo na família real britânica acontece após o recente sucesso da série ‘Bridgerton’ (Netflix), na qual negros formam a elite da monarquia. Qual a importância de uma série que promove a integração de pretos em posições de poder?
A cultura tem um papel muito importante na elaboração da linguagem do inconsciente. Ou seja, são os símbolos presentes na nossa cultura que formam as representações que nosso inconsciente usa para se comunicar com o consciente. A naturalização de comportamentos, ideias e atitudes está muito presente na cultura, na arte de modo geral. Basta lembrarmos que em todos os grandes processos de mudança política ao longo da história houve um movimento cultural e artístico que aconteceu conjuntamente. Um exemplo foi a Revolução Francesa e o Iluminismo. Por isso, é muito importante que o psicanalista que lida com a saúde mental de pessoas negras seja capaz de identificar na cultura os símbolos sobre a negritude. Sejam símbolos marcados pelo racismo ou símbolos positivos, como no caso da série da Netflix.
Anos atrás, a mídia europeia destacou que negros ingleses ricos compravam títulos simbólicos de nobreza na tentativa de ter mais status e em busca de aceitação na sociedade majoritariamente branca do Reino Unido. A senhora vê algo parecido no Brasil em relação a negros bem-sucedidos ansiosos por respeito e prestígio?
Sim. E isso também está associado aos relacionamentos interraciais. Pessoas negras que se relacionam com parceiros brancos ou parceiras brancas tendem a ter mais aceitação e prestígio social do que pessoas negras que se relacionam com outros negros. No Brasil, por causa da escravidão, apenas a pele branca é símbolo de deferência e privilégio social. Ao ver uma pessoa branca na rua, as pessoas em geral, sejam elas brancas ou negras, têm reação diferente de quando veem uma pessoa negra.
Recentemente, a imprensa noticiou a movimentação de grupos que defendem a volta da monarquia no Brasil. Há vários jovens negros entre os membros. Fazem lembrar a Guarda Negra da Redentora, formada por ex-escravos que ficaram ao lado da família real após a libertação. Como a senhora interpreta um negro que defende o regime monárquico hoje em dia?
O Brasil é um País onde a maioria da população é pobre e com pouco acesso à formação de fato. Muito do que as pessoas das classes populares acessam é através das mídias sociais e dos meios de comunicação. Por isso, as fake news fizeram e fazem tanto sucesso. Então, muito do que se pensa sobre a monarquia, por exemplo, é baseado no romance medieval, ou até mesmo nas narrativas de novelas e filmes de época. O saudosismo é um traço natural dos seres humanos, sobretudo em grupos sociais atravessados por traumas coletivos, como os negros. A ideia de que antes era melhor, ou diferente, reforça esse tipo de conduta. As pessoas negras no Brasil sofrem emocionalmente numa sociedade que as odeia e as exclui, e muito pouco é falado sobre isso. Os profissionais do campo da saúde mental sequer têm preparo para lidar com essa questão. E há pouco espaço para esses debates na formação dos profissionais. Professores também não são preparados para lidar com o racismo estrutural no currículo escolar e dentro da escola. Vivemos num País negro onde a presença negra é indesejada. Sabe quando, aqui no Brasil, a filha de uma mulher negra (como Meghan Markle) casaria com o neto da rainha? Nunca. No Brasil, mulheres negras são arrastadas inconscientes por viaturas policiais à luz do dia no centro da segunda maior cidade do País (o caso Claudia Silva Ferreira, ocorrido no Rio) ou mortas com cinco tiros também à luz do dia, e seus algozes permanecem impunes. Nós precisamos fortalecer espaços de formação racial, como o Coletivo Di Jejê, que vem desde 2014 pautando a formação de profissionais da educação, saúde mental, serviço social, direito e tantas outras áreas por meio de cursos on-line, palestras e debates, onde a população negra busca apoio e orientação. Nosso dever, como educadores, jornalistas, psicanalistas, pais, mães e cidadãos, é o de garantir que o racismo e a exclusão racial sejam o passado na história do nosso País, não o futuro.
Veja também: