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Ataque frívolo à Vogue ressalta a atual hipocrisia pandêmica

Veículos de comunicação não devem forjar imagem politicamente correta apenas para agradar aos leitores

8 mai 2020 - 12h05
(atualizado às 12h06)
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O brasileiro sempre teve o mau hábito de eleger inimigos representativos para tentar expurgar suas frustrações e justificar a erupção da agressividade internalizada. A psiquiatria define esse comportamento como Transtorno Opositivo-Desafiador, visível em crianças mimadas. O alvo da vez é a Vogue, mais relevante publicação de moda e estilo de vida do País. A edição de maio, estrelada por Gisele Bündchen, produziu mais espanto do que um daqueles desfiles herméticos onde se aplaude o incompreensível. A chamada de capa 'Novo normal' e a linha-fina 'Simplificar a vida e se concentrar no essencial são os caminhos para um futuro mais ético e saudável' foram interpretadas como atentado ao bom senso e falsa sensibilização com a humanidade impactada pelo novo coronavírus.

A capa da discórdia: Vogue se tornou alvo de artilharia pesada movida por suposta solidariedade humanitária
A capa da discórdia: Vogue se tornou alvo de artilharia pesada movida por suposta solidariedade humanitária
Foto: Fotomontagem: Blog Sala de TV

A oportunista patrulha do politicamente correto, nas redes sociais e no YouTube, acusou a direção brasileira da Vogue de ser elitista (santo pleonasmo!), estar fora da realidade e fazer apologia ao luxo inacessível. Talvez seja um caso epidêmico do Complexo de Fourier, que faz o indivíduo desejar a miséria coletiva como forma radical de igualar as pessoas. Sim, a publicação da Condé Nast produzida no Brasil pela Editora Globo foca em parcela privilegiada da sociedade. Qual o problema? Há nas bancas dezenas de outros títulos igualmente direcionados ao leitor com situação financeira privilegiada. Por acaso essas revistas que empregam centenas de profissionais, movimentam vários setores da indústria e geram milhões em impostos aos governos devem ser proibidas por supostamente ofender os mais pobres?

A massa de descontentes manifestou repúdio com a escolha de Gisele para o ensaio principal. Usar Prada (marca italiana desejada por todos, consumida por meia dúzia) foi um agravante. Disseram que o lugar da über model deveria ter sido ocupado por médicas, enfermeiras, voluntárias, enfim, mulheres anônimas atuantes no front da guerra contra a covid-19. Sim, elas são realmente heroínas dignas de capas e primeiras páginas. Várias publicações de moda (inclusive versões da Vogue em Países europeus) prestaram homenagens comoventes. A edição brasileira não o fez, e pronto. Foi uma escolha editorial. Preferiu abordagem idiossincrática ao destacar o novo estilo de vida que se impõe em consequência do caos sanitário e da necessária autorreflexão.

Alta, loira, linda, famosa e milionária, Bündchen não é, de fato, o arquétipo da brasileira, tampouco de quem se exaure no campo de batalha da pandemia, mas, bem antes dessa tragédia global, a modelo já defendia a adoção de postura mais empática, a preservação dos recursos naturais e de maior contato com a natureza, o investimento pessoal na espiritualização, entre outras pautas convergentes com as demandas suscitadas por esse momento dramático da história. Necessário admitir que vesti-la na capa com uma marca nacional seria mais coerente. Agora, mais do que nunca, a moda brasileira — parte de cadeia têxtil que emprega 1,6 milhão de pessoas no País — grita por apoio midiático e governamental para sobreviver a novo tombo. Entretanto, toda publicação precisa cumprir acordos comerciais para sobreviver. As 'Pradas' da vida pagam as contas (e os salários) e ajudam a manter o trôpego mercado editorial de pé.

Opor-se à Vogue e ao que ela simboliza é um direito inegociável. Nada e ninguém podem sequestrar a liberdade de opinião. Contudo, no tribunal da internet, o que deveria ser argumento se mostra mero frenesi exibicionista. Muitas dessas pessoas que vociferam contra a revista e a elite 'insensível e predadora' são as mesmas que, sendo de classe média, sonham ascender à casta que tanto condenam, vendem uma vida artificialmente glamourosa em posts constrangedores, não dão 'bom dia' ao porteiro do próprio prédio, reclamam quando a diarista reajusta o preço da faxina, tratam o motorista de Uber como se fosse seu chofer particular, ignoram a gorjeta do garçom e preferem vender suas roupas 'fora de moda' em brechós online a doá-las.

Boa parte de quem, hoje, vangloria-se dessa empatia súbita e do ativismo humanista (só virtual, ressalte-se) logo sairá correndo para o primeiro shopping center a fim de saciar o consumismo reprimido na quarentena.

Parcela numerosa desses juízes de ocasião da Vogue — e dessa sociedade capitalista da qual não abrem mão — vai estourar o limite do cartão de crédito na próxima Black Friday ao comprar os looks perfeitos para 'lacrar' no Instagram. São esses cidadãos 'desapegados' que colaboram para fazer do Brasil um dos Países com maior desigualdade social do planeta. Somos eu, você, todos. Demonizar a Vogue não muda nada. É só passatempo contra o tédio do isolamento social e, para alguns, exercício de egocentrismo. Enquanto isso, no mundo real, o número de mortos pela covid-19 se multiplica sem parar.

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