De autor homofóbico, 'Pantanal' tem gay peão e 'hétero gay'
Remake na Globo do sucesso da TV Manchete reaviva declaração polêmica de Benedito Ruy Barbosa contra “história de bicha” na TV
Em abril de 2016, na festa de lançamento da novela 'Velho Chico', o supervisor da trama, Benedito Ruy Barbosa, deu uma declaração amplamente repercutida na imprensa e nas redes sociais. “Odeio história de bicha”, disse. “Pode existir, pode aceitar, mas não pode transformar isso em aula para as crianças.” O autor comentou sentir “puta orgulho” por seus netos e bisnetos serem “tudo macho pra cacete”.
Para espanto dos jornalistas convidados pela Globo para cobrir o evento, o veterano da teledramaturgia insistiu em opinar a respeito do aumento de personagens LGBT e de beijos gays nos folhetins. “Não sou contra, não acho errado. O que acho é que quando eu tenho na mão 80 milhões assistindo minha novela, tenho que ter responsabilidade com as pessoas que estão me assistindo”, explicou.
"Tenho que saber que tem muito pai que não quer que o filho veja, porque eles não sabem explicar, não sabem como colocar. Muita gente reclama disso para mim. O que não é justo é você transformar: só é normal o cara que é bicha, o que não é bicha não é normal. A mulher que é sapatona é perfeita, a que não é sapatona não é legal. É assim que estamos vivendo".
Benedito Ruy Barbosa foi criticado por alguns famosos assumidamente homossexuais. Entre eles, o também autor Aguinaldo Silva e o jornalista e ativista Jean Wyllys. No domingo (6), o novelista de 89 anos surgiu no 'Fantástico' em matéria a respeito do remake de 'Pantanal' a ser produzido na Globo no ano que vem. Fenômeno de audiência na TV Manchete em 1990, o novelão rural derrotou incontáveis vezes a emissora da família Marinho no Ibope.
O que poucos lembram é que o mesmo Benedito Ruy Barbosa rotulado ‘homofóbico’ e ‘antigay’ criou um personagem homossexual e abordou a homofobia naquela trama. Zaqueu, vivido pelo ator João Alberto Pinheiro (falecido em 1991, aos 31 anos, por complicações de câncer e Aids) era um mordomo obrigado a trocar o glamour do Rio de Janeiro pela vida rudimentar no pantanal mato-grossense.
Afeminado e desbocado, ele caiu nas graças do público pelas cenas divertidas ao virar uma espécie de peão de luxo e interagir com viris boiadeiros de fazenda. Até se interessou por um deles, Alcides (Angelo Antônio). “Eu tô apaixonado por você”, declarou. “Olha Zaqueu, eu sempre te respeitei e sempre vou te respeitar, só que eu gosto de mulher”, respondeu o matuto. Zaqueu usava o bom humor como arma contra as brincadeiras por sua condição sexual e os trejeitos.
Enquanto isso, o protagonista de 'Pantanal', José Leôncio (Claudio Marzo), exalava preconceito. Ele maltratava o filho, Joventino (Marcos Winter), por acreditar que o rapaz criado apenas pela mãe no Rio de Janeiro era gay. O fazendeiro rejeitava a afeição do rapaz. Acabou expulsando o herdeiro de casa. Na verdade, o arrojado Jove era heterossexual e apaixonado pela ‘mulher-onça’ Juma (Cristiana Oliveira). Foi difamado pelo próprio pai apenas por não personificar a imagem do macho rústico.
A nova versão de 'Pantanal' está sendo escrita por Bruno Luperi, neto de Benedito. Resta conferir se a homossexualidade de Zaqueu e a homofobia de Zé Leôncio serão mantidas na adaptação. Uma curiosidade: a Globo recusou a história em 1984, alegando dificuldade para gravar nas paisagens pantaneiras. Depois do sucesso estrondoso da novela na Manchete, o canal chamou o autor de volta e deu a ele carta branca. Assim nasceu a saga de José Inocêncio (Antonio Fagundes) em Renascer, de 1993.
Naquele folhetim ambientado na zona cacaueira da Bahia, Benedito Ruy Barbosa abordou um aspecto da diversidade de gênero. Buba (Maria Luísa Mendonça) era apresentada ao público como hermafrodita, ou seja, nascida com os órgãos sexuais masculino e feminino. Hoje, o termo usado para definir essa condição é intersexo, o ‘i’ da sigla LGBTQIA+. A personagem foi bem-aceita pelos telespectadores em uma época que pouco se falava a respeito.