Globo: escândalo racista enquanto novela denuncia o racismo
Vídeo com William Waack debochando de ‘preto’ opõe merchandising social contra o preconceito em ‘O Outro Lado do Paraíso’
“Os arrogantes são como os balões: basta uma picadela de sátira ou de dor para dar cabo deles”, escreveu a célebre ensaísta francesa Madame de Staël, opositora do ególatra Napoleão.
William Waack, conhecido no meio jornalístico pela empáfia atrás das câmeras, caiu numa armadilha armada por ele próprio. Um deboche seu virou drama – e pode antecipar o fim de sua carreira no telejornalismo.
Um vídeo de bastidor do ‘Jornal da Globo’, durante a cobertura da eleição presidencial americana de 2016, mostra o âncora ironizando um motorista que buzinava perto de onde ele e um entrevistado estavam, em Washington (cidade com numerosa população negra), à espera da entrada ao vivo na TV.
“Tá buzinando por quê, seu merda do cacete?”, diz o apresentador. Em seguida, sussurra para o convidado ao seu lado o que se entende como: “é preto. É coisa de preto”.
O flagra vazado por alguém ainda não identificado foi o assunto mais comentado da internet na quarta-feira (8). Tornou-se um escândalo de cunho racista poucas vezes visto na mídia brasileira.
Depois de horas de inexplicável silêncio, a emissora anunciou a saída temporária de William Waack da bancada do ‘JG’, onde ele está desde 2005.
“A Globo é visceralmente contra o racismo em todas as suas formas e manifestações. Nenhuma circunstância pode servir de atenuante. Diante disso, a Globo está afastando o apresentador William Waack de suas funções em decorrência do vídeo que passou hoje a circular na internet, até que a situação esteja esclarecida”, diz o comunicado.
Outro trecho da nota: “Waack afirma não se lembrar do que disse, já que o áudio não tem clareza, mas pede sinceras desculpas àqueles que se sentiram ultrajados pela situação”.
‘Àqueles que se sentiram ultrajados’ são ‘apenas’ 54% da população brasileira, de acordo com o IBGE, algo em torno de 111 milhões de ‘uns’, como a Globo passou a tratar seus telespectadores na nova campanha de autopromoção.
Esse escândalo racial envolvendo a maior e mais poderosa emissora do País acontece – santa ironia! – no momento em que sua principal novela aborda de maneira contundente a discriminação contra negros.
Em ‘O Outro Lado do Paraíso’, o autor Walcyr Carrasco mostra o racismo de uma branca de classe média alta, a dondoca Nádia (Eliane Giardini), contra sua empregada doméstica Raquel (Érika Januza), pertencente a um quilombo.
Desde o primeiro dia de trabalho, a moça foi alvo de críticas e zombaria por conta de sua origem étnica. A situação piorou quando Nádia descobriu o romance da moça com seu filho, o estudante de Direito Bruno (Caio Paduan).
No capítulo de quarta-feira (8), ela soltou uma ‘pérola’ racista: “já pensou eu ter um neto preto? Troco no berçário”.
O folhetim denuncia o racismo explícito e também o ‘racismo cordial’, expressão criada para descrever o preconceito praticado de maneira dissimulada.
A Globo, que já foi acusada de empregar atores negros somente em papéis de empregados e bandidos, ampliou nos últimos anos a presença de afrodescendentes na teledramaturgia e no telejornalismo.
Há vários jornalistas negros em destaque, como Gloria Maria, ícone do ‘black power’ na TV e hoje no ‘Globo Repórter’, Maria Júlia Coutinho, apresentadora da previsão meteorológica e ocasionalmente do ‘Jornal Hoje’, e Heraldo Pereira, apresentador eventual do ‘Jornal Nacional’ e comentarista de política do ‘Jornal da Globo’, onde interage diariamente com William Waack.
Uma interação que, hoje, parece ser improvável que continue. O retorno de Waack ao ‘Jornal da Globo’ é incerto.