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LGBTs não devem 'cancelar' Madonna por post sobre cloroquina

Escritor e acadêmico Renato Gonçalves ressalta contribuição da cantora no combate a preconceitos e em prol da diversidade

3 ago 2020 - 13h29
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O Instagram gerou selo de 'fake news' em post de Madonna com vídeo de uma médica defensora do uso da hidroxicloroquina no tratamento de paciente com covid-19. A divulgação de medicamento propagandeado por Donald Trump e Jair Bolsonaro — mesmo sem comprovação científica de eficácia — gerou nas redes sociais uma campanha de 'cancelamento' da cantora. Até mesmo gays, lésbicas e transexuais se manifestaram contra a rainha do pop, contaminada pelo novo coronavírus durante shows em Paris, no início do ano.

Madonna sempre deu visibilidade a negros, latinos e gays nos shows e clipes que provocavam discussão sobre sexualidade e diversidade
Madonna sempre deu visibilidade a negros, latinos e gays nos shows e clipes que provocavam discussão sobre sexualidade e diversidade
Foto: Reprodução

Ícone progressista, com imensurável contribuição para a luta coletiva contra preconceitos variados, Madonna se viu, pela primeira vez, contestada pelo público que a consagrou. Ainda que tenha errado ao repercutir uma fonte de informação pouco confiável (a tal médica acredita que a maior parte das doenças são produzidas por sonhos dos humanos com ETs), a cantora não merece ser castigada pelo implacável tribunal da internet. Afinal, não há ídolo perfeito. Errar é inevitável até para a diva das divas.

Para entender melhor a importância histórica de Madonna no contexto social, o blog ouviu o doutorando em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo e mestre em Filosofia (IEB-USP) Renato Gonçalves. Docente no curso de Publicidade e Propaganda da ESPM, ele é autor dos livros 'Nós Duas, as Representações LGBT na Canção Brasileira' e 'Questões LGBT e Música Brasileira Ontem e Hoje'.

Em vídeo no Instagram, você afirma que a tentativa de pessoas LGBT 'cancelarem' Madonna se dá por desinformação. Por quê?

Madonna cometeu, deliberadamente ou não, um equívoco ao compartilhar um vídeo fake news sobre os supostos efeitos positivos da hidroxicloroquina contra a covid-19. No frisson dos cancelamentos diários nas redes sociais, vi que alguns sujeitos LGBT queriam cancelar totalmente a cantora. Claro que muita gente apenas a criticou, o que é extremamente válido. Mas outros já queriam apagar toda e qualquer referência à cantora, o que me indignou. Creio que parte disso veio pelo comportamento em rebanho que os cancelamentos nos trazem, mas, outra parte, pelo desconhecimento e pela alienação a tudo o que a cantora fez pela comunidade LGBT. Temos que ter respeito à trajetória e às contribuições que ela nos trouxe.

O escritor e acadêmico Renato Gonçalves, Madonna em imagem do álbum Erótica e a capa do livro sobre interação entre a música e as pautas LGBT
O escritor e acadêmico Renato Gonçalves, Madonna em imagem do álbum Erótica e a capa do livro sobre interação entre a música e as pautas LGBT
Foto: Reproduções

Madonna foi mesmo uma precursora no discurso pró-LGBT e no esclarecimento a respeito da aids?

Totalmente. Madonna surgiu na década de 1980, um momento tenebroso para as pautas LGBT como um todo, devido ao surgimento da aids no início daquele período. Todas as conquistas comportamentais que obtivemos durante as décadas de 1960 e 1970 foram brutalmente solapadas por um vírus e uma síndrome sobre os quais havia mais desconhecimento do que informações, o que cultivou o preconceito. Igreja Católica, setores conservadores e até mesmo políticas de Estado perseguiram homossexuais, que pareciam ser os vetores exclusivos da 'nova doença', o que pouco tempo depois foi desmistificado. Madonna, mesmo com esse cenário, foi uma das primeiras e principais artistas de grande projeção a falar abertamente sobre a aids, veiculando informações sobre prevenção e tratamento no encarte do LP Like a Prayer, em 1989, incluindo telefones locais de ONGs e centros de acolhimento, adaptando o encarte em cada País. No ano seguinte, ela reproduziu a clássica apresentação de 'Vogue' que performou no VMA, da MTV, em um evento pró-fundos para a pesquisa e o tratamento da síndrome. No disco Erotica, de 1992, fez a canção 'In This Life', inspirada por um amigo soropositivo que viria a falecer, além de falar abertamente de sexualidade no disco todo, quando isso estava envolto de névoas pelo medo da aids. Naquele momento, a pauta LGBT, por conta do HIV/aids, não era de celebração. Pelo contrário, era de luta e acolhimento. Madonna foi uma das poucas artistas de gigante magnitude a encarar de frente a questão.

Qual a importância de Madonna na visibilidade e promoção das diversidades racial, de gênero e sexual?

Madonna é uma mistura, assim como a música pop que ela produz. Desde o início, ela se aproximou dos latinos, dos pobres e dos negros estadunidenses e isso se reflete nos seus discos iniciais. Muito associada à dança, na década de 1980, sempre optou por bailarinos homossexuais e afeminados, como aqueles que se vestem de sereia na performance de 'Cherish', na Blond Ambition Tour. Enquanto o lúgubre clipe de 'Justify My Love' atravessa diversas fantasias homoeróticas, 'Vogue' tira da margem as batalhas de voguing, que foram importantes espaços de afirmação transgênero em Nova York, algo que a recente série Pose (primeira temporada disponível na Netflix) retrata bem. Misturando referências, Madonna colocou em cena muitas identidades outrora silenciadas ou sem espaço nos grandes produtos culturais.

No mesmo vídeo, você cita o álbum Erotica. Como aquele trabalho contribuiu para a luta das pautas femininas e feministas?

O disco Erotica é um marco na carreira de Madonna. Embora não fosse a primeira vez em que a cantora falasse de erotismo e sexualidade, pois essas tópicas já surgiram desde pelo menos a performance de 'Like a Virgin', no qual ela desce de um bolo de casamento vestida de noiva e simula uma masturbação no VMA de 1984, chutando a expectativa matrimonial que o corpo feminino recebe, Madonna escancarava os armários do inconsciente e performava as mais diversas fantasias sexuais. O livro lançado junto com o álbum, o SEX, foi um escândalo pelas obscenas fotografias de Steven Meisel. A conservadora sociedade norte-americana ficou horrorizada com aquela pornografia que retomava tanto o sutil erotismo da literatura erótica quanto a rigorosa atuação subversiva das masmorras do BDSM (bondage, disciplina, dominação, submissão, sadismo e masoquismo). O questionamento mais importante foi: será que haveria a mesma recepção caso aquele trabalho fosse realizado por um homem? Essa é uma frase que ela canta em 'Human Nature', canção que serviu de resposta aos críticos em 1994. (A crítica e intelectual) Camille Paglia, uma das principais intérpretes de Madonna, que hoje é atacada pela própria cantora, foi, à época, uma das poucas acadêmicas que enxergou e enalteceu esses aspectos libertários no trabalho da cantora, chegando a dizer que ela seria o futuro do feminismo.

O encarte de Like a Prayer: informações sobre a aids em período crítico de contaminação da comunidade LGBT
O encarte de Like a Prayer: informações sobre a aids em período crítico de contaminação da comunidade LGBT
Foto: Reprodução

No geral, falta aos LGBT brasileiros mais consciência e demonstração de respeito a quem iniciou a luta pela causa?

Com certeza. É só vermos, por exemplo, o que ocorreu na última parada LGBT de São Paulo, totalmente virtual devido à pandemia, que apenas convidou artistas e personalidades da nova geração, apagando qualquer referência ou homenagem àquelas que iniciaram o movimento político no Brasil. No mesmo mês em que faleceu Miss Biá (aos 81 anos, vítima da covid-19), uma de nossas primeiras drag queens e que pouquíssimos jovens chegaram a conhecer em vida, ver a ausência de tais pioneiras artistas me entristece demais. Silvetty Montilla, em seu canal no YouTube, dá aulas sobre a história do movimento. Mas onde estão as pessoas interessadas em irem além do 'lacrar' e do 'dar close'? Naturalmente, a história oficial, com seus mecanismos de exclusão sistematizada, já apaga os nomes LGBT. Cabe a nós resgatarmos, celebrarmos e respeitarmos, enquanto sujeitos conscientes de que a situação na qual nos encontramos foi conquistada por pessoas que deram a cara a bater para que hoje possamos ter o mínimo de direitos e conquistas.

No seu livro Questões LGBT e Música Brasileira Ontem e Hoje, você chega a quais conclusões sobre a influência de artistas musicais na luta contra o preconceito?

Os artistas são artesãos da trama simbólica da cultura. Eles fornecem imagens à identificação, reposicionam termos, constroem novos sentidos. Olhemos, por exemplo, o fenômeno que era um show presencial de Ana Carolina, quantas mulheres lésbicas se identificam com ela e iam ao seu show cantar dores de amor! A mesma coisa os shows da nova onda LGBT na música popular brasileira, como Liniker e As Bahias e a Cozinha Mineira, que abriu as portas de casas de show e palcos para a população transgênero, outrora à margem desses circuitos. É bonito ver como o público do Getúlio Abelha, um artista com uma estética camp, se espelha nele e tem a coragem de imitar a sua estética veada. Ou ver, por exemplo, o Rico Dalasam, um rapper de extremo talento, ser reconhecido no último Roda Viva (TV Cultura) pelo Emicida, um dos bastiões do rap, um gênero que já foi machista, homofóbico e misógino. A arte move os moinhos da cultura, espelha os novos tempos, transforma a realidade.

Acredita que todo artista, assim como Madonna, tem papel político a cumprir e deve praticar ativismo de causas sociais?

Não acredito em nada que venha a ser imposto obrigatoriamente a um artista, mesmo que seja uma pauta política, social ou ativista. Mas, de fato, na era da imagem, o artista que obteve grande projeção tem uma importante arma na mão para ajudar a realizar alguma transformação social. Aquele que souber e quiser usar dessas ferramentas midiáticas para promover algo com certeza deve ser um aliado às pautas. Estamos ainda aprendendo os mecanismos do contexto digital, atacado por bots (sistemas autônomos que espalham conteúdo) e perfis odiosos, mas com certeza a comunicação é um grande veículo para a transformação social. Sob a insígnia das telas e das câmeras, viver, postar e gravar a si mesmo é uma grande performance política e, nisso, todos nós temos possibilidades de fazermos a diferença, mesmo que de pouquinho em pouquinho, não só os artistas.

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