Na novela: “não sou racista, mas não quero preto na família”
‘O Outro Lado do Paraíso’ retrata com precisão o racismo mal disfarçado que se pratica no dia a dia
A dondoca Lorena (Sandra Corveloni) pede conselho ao marido, o delegado Vinícius (Flavio Tolezani): se deve ou não contar à amiga Nádia (Eliane Giardini) que o filho dela, Bruno (Caio Paduan), está se relacionando com a empregada negra Raquel (Érika Januza)?
Lorena sabe que Nádia é uma mulher cheia de preconceitos e, mesmo temendo a reação, está louca para fazer a fofoca.
“Não sou racista. Só que eu não gostaria que a Laura casasse com um preto”, diz Lorena ao marido, referindo-se à filha que teve ainda solteira e posteriormente adotada por Vinícius.
“A vida da Laura seria bem mais fácil se ela casasse com um branco, não é?”, comenta o delegado. “Porque tem muito racismo aí. Mulher que casa com negro também sofre preconceito.”
“Então, é isso que eu tô dizendo, não é racismo”, justifica-se a dona de casa.
“Mas é, é sim”, rebate Vinícius. “E presta atenção: não pode pensar assim muito menos falar. Racismo dá cadeia.”
Lorena se corrige: “Cala-te boca. Nunca mais vou falar isso, mozão, nunca mais. Nunca fui racista, de jeito nenhum”.
Mais tarde, as duas amigas estão frente a frente. Lorena não resiste e revela o que ouviu no salão de cabeleireiro: Bruno está namorando uma preta.
“Não é possível. O que ele ia fazer com uma negra?”, reage Nádia, colérica. “O que todo homem faz”, responde Lorena.
Ao ser informada de que a tal negra é Raquel, sua empregada, Nádia destila racismo e machismo. “Eu sabia que aquela desgraçada estava dando em cima dele. Vou pra casa agora, vou acabar com ela.”
Lorena orienta a amiga a não agir impulsivamente – e faz nova demonstração de racismo: “você tem que descobrir se ele tá só pegando ou se ele tá namorando”.
Na cabeça da personagem, assim como na de milhões de pessoas, é aceitável que um homem branco ‘fique’ com uma negra, desde que não seja um relacionamento sério.
Eis que surge na sala Laura, a filha de Lorena. Indignada com o que acaba de ouvir, a garota enfrenta a mãe: “a sua amiga diz que o filho dela não pode namorar uma negra e você não vai dizer nada? Depois diz que não é racista, né, mãe? Isso é preconceito, sabia?”
Numa argumentação típica de quem quer fugir do flagrante de racismo, Nádia retruca: “eu não quis dizer exatamente isso”.
Walcyr Carrasco, autor de ‘O Outro Lado do Paraíso’, é hábil em esfregar na cara do telespectador questões sociais relevantes.
As duas cenas descritas estão entre as melhores vistas na teledramaturgia recente no que se refere à denúncia do ‘racismo nosso de cada dia’.
Um retrato fiel da discriminação intrínseca – às vezes explícita, às vezes dissimulada – ao comportamento de boa parte da sociedade brasileira.
Há por aí milhões de Lorenas e Nádias com o mesmo pensamento: negro pode ser empregado e até amigo, mas não deve fazer parte da família.
O País mais miscigenado do planeta, com a segunda mais numerosa população negra (atrás apenas da Nigéria), tem o preconceito racial como uma das principais formas de exclusão social.
A novela, vista por uma fração da intelectualidade e do público como subproduto cultural, mostra seu valor ao tratar tema tão relevante de maneira cirúrgica e inspirada.
Dizem que novela é escapismo e alienação. No caso de ‘O Outro Lado do Paraíso’, a trama sobre racismo faz um eficiente trabalho de conscientização de uma vergonhosa mazela da vida real brasileira.