O Brasil ainda não sabe lidar com o beijo entre dois homens
Repercussão do flagra com atores Gil Coelho e Maurício Destri revela que o País é liberal apenas na imagem que vende aos gringos
Cenas de violência urbana e miséria endêmica não chocam mais os brasileiros. Há conformismo com tais imagens. Estão inseridas no cotidiano.
Já a foto de um beijo entre dois homens ainda surpreende, escandaliza, revolta – e gera centenas de manchetes na mídia online, além de viralizar nas redes sociais, como se fosse um acontecimento.
Foi o que se viu ao longo da quarta-feira (19), com a repercussão do selinho – imagine se fosse um beijo mais caloroso! – entre Gil Coelho, o Tiago Justo da novela Jesus, da RecordTV, e Maurício Destri, intérprete do Camilo de Orgulho e Paixão, trama das 18h da Globo.
O Google não mente: uma busca simples revela dezenas de matérias a respeito da foto. Ou melhor, do beijo.
Alguns textos vão além: citam suposto namoro entre os atores, ainda que não tenham assumido tal relação.
Foram listadas ex-namoradas famosas de ambos. Bruna Marquezine acabou incluída na ‘notícia’ do beijo por ter se relacionado com Destri nos bastidores de uma novela.
Os comentários de leitores nos sites e dos usuários de Facebook e Twitter dividiram-se entre quem não viu nada demais no gesto e os que criticaram (ou ironizaram) tal atitude.
Houve, obviamente, inúmeras manifestações de homofobia: algumas explícitas, outras sob rasos eufemismos. Impressionante constatar como a imagem de um simples beijo pode mexer profundamente com questões íntimas. Freud explica.
Diante da repercussão injustificável, os atores se manifestaram. “Era somente um jantar feliz com amigos”, escreveu Maurício Destri no Instagram.
“Nada demais, amigos, encontros, abraços... Tenho uma relação de carinho e mutualidade com meus amigos. Isso não vai mudar! Acho chata essa perseguição toda à vida alheia, ainda mais quando vem associada a uma ideia moralista de que o homem tem que se manifestar de forma truculenta e viril o tempo todo. Estamos num momento especial da nossa evolução, mas ainda um pouco apegados à valores antigos.”
Gil Coelho também fez um post a respeito da superexposição. “Sou feito de Amor, fui criado com muito amor, portanto, vivo com pessoas que amo ter ao meu redor... O mundo está em evolução e em tempos como nosso, eu defendo o óbvio: a possibilidade de nos relacionarmos com amor e afeto. Eu sou completamente apaixonado pelos meus amigos. Cenas como essas sejam o que são: momentos simples repletos de poesia e amor”, explicou.
A insistência de parte da imprensa em vasculhar e exibir a vida amorosa e sexual dos famosos é sintoma e, ao mesmo tempo, reflexo de uma sociedade ainda conservadora e ávida por se intrometer na vida alheia para bisbilhotar e julgar comportamentos e ideologias.
No exterior, o brasileiro tem uma imagem liberal em relação à sexualidade. A base dessa distorção é o Carnaval, onde a nudez e a ‘troca de sexo’ (homens tradicionalmente se vestem de mulher) são falsamente naturalizadas.
Já no dia a dia, se uma mulher faz topless na praia pode ser presa em fragrante por atentado violento ao pudor. Mães que amamentam o filho no peito são constrangidas e até expulsas de certos lugares. Um homem usando saia pode ser insultado e espancado na rua.
E um inofensivo beijo entre dois amigos que se amam gera reações desproporcionais, como se fosse algo anormal ou imoral.
Cazuza disse que “o beijo é o fósforo aceso na palha seca do amor”. Muitas vezes, sem querer, inflama também a palha seca do ódio.
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